ENTREVISTA


Professora doutora no Departamento de Filosofia da Educação e Ciências da Educação na Universidade de São Paulo (USP), a psicóloga Carla Biancha Angelucci é a entrevistada desta edição da EntreLinhas. Ela fala sobre a importância da aprovação da Lei nº 13.935/19, a qual garante serviços de Psicologia e Assistência Social no ensino básico da rede pública, sobre de que forma a Psicologia pode trabalhar para reconhecer especificidades relacionadas à subjetividade, os desafios da profissão no atual contexto de pandemia e a ameaça de retrocessos com o Decreto n° 10.502, o qual  institui a Política Nacional de Educação Especial no país. Na USP, Carla é também vice-presidenta da Comissão de Pós-Graduação em Educação e coordenadora da linha Educação Especial - táticas de resistência à produção de um não lugar para as diferenças na escola, no Grupo de Pesquisa CNPq Políticas de Educação Especial. 

Psicologia na Educação: conquistas e retrocessos

Qual a importância da Lei nº 13.935/19, a qual garante serviços de Psicologia e Assistência Social no ensino básico da rede pública? 
A Lei nº 13.935/19 é fruto de uma longa e densa discussão das entidades da Psicologia, tanto do sistema Conselhos como da Associação Brasileira de Psicologia Educacional (ABRAPEE) e da Associação Brasileira de Ensino de Psicologia (ABEP). A sua implementação garante à Psicologia o reconhecimento de ser uma ciência que tem a contribuir, de diferentes formas, no campo da educação. 
 
Como as gestões estão se preparando para a implementação da Lei?
É importante destacar a relevância desse trabalho ser articulado e monitorado pelo Fórum de Entidades Nacionais da Psicologia Brasileira (FENPB), na medida em que várias redes de educação básica estão propagando, de forma equivocada, a entrada da/o psicóloga/o como aquela/e a fazer com que a criança deixe de ter supostos problemas de ensino ou de aprendizagem. Acredito que essa crença é um equívoco muito grande porque nega o próprio espírito da Lei e as discussões que Psicologia Escolar tem tido nos últimos 30 anos, as quais procuram combater esses processos de patologização e de individualização dos problemas. O objetivo é entender as dificuldades como questões da rede como um todo, acolhendo e ensinando as crianças tais como elas são.
 
Qual o principal papel da Psicologia na Educação?
O trabalho da/o psicóloga/o educacional vai muito além de identificar dificuldades e supostos transtornos de aprendizagem e de atuar com os estudantes. Nós não partimos do pressuposto de que as questões da educação tenham a ver com dificuldades de indivíduos: reconhecemos a pluralidade humana e trabalhamos para desenvolver projetos políticos-pedagógicos que dêem suporte a essa pluralidade. Entramos na rede de ensino para ajudar a instituição a “ler” a comunidade que está inserida: a escola promove uma forma específica de socialização que é a partir da partilha do patrimônio humano, de maneira sistemática e intencional. O trabalho da/o psicóloga/o é conseguir estabelecer uma mediação entre os interesses institucionais e os da comunidade. De acordo com o terceiro parágrafo do Artigo 1° da Lei nº 13.935/19, “(...) a equipe multiprofissional deverá considerar o projeto político-pedagógico das redes públicas de educação básica e dos seus estabelecimentos de ensino”. Trabalhamos a partir do desenvolvimento desse projeto, no sentido de colaborar com a qualidade do processo de ensino-aprendizagem. Lembro, ainda, que não se trata de negar a participação da/o psicóloga/o junto aos estudantes, mas, sim, entender que o intuito da Psicologia Escolar não é o de avaliar patologias nos alunos. O intuito é reconhecer as especificidades relacionadas à cultura, ao sujeito e  à linguagem, identificando como isso compõe o projeto político-pedagógico da escola.
 
 
Neste momento de pandemia, qual a importância da Psicologia no contexto educacional? 
O principal compromisso da Psicologia Escolar é garantir a universalização do direito à educação e é com isso que nós, psicólogas/os, precisamos nos concentrar neste contexto de pandemia. É necessário que a/o profissional de Psicologia reconheça quem está ou não tendo acesso aos conteúdos didáticos, participe dos processos de busca ativa das/os estudantes, conheça a realidade das/os alunas/os e promova soluções que sejam de âmbito comunitário, como, por exemplo, quando uma/um psicóloga/o propõe-se em ir atrás das/os alunas/os que não estão respondendo às propostas feitas de educação remota pela escola e faz um mapeamento de quais são as barreiras enfrentadas por suas famílias. Isso faz com que o trabalho da Psicologia necessite de uma articulação com a Assistência Social porque muitas dessas realidades se referem à desigualdade socioeconômica.
Saber identificar esses problemas educacionais, durante a pandemia, como a falta de acesso à internet, a inexistência de equipamentos e de um letramento digital por parte das famílias, faz com que a/o psicóloga/o consiga, também, construir estratégias conjuntas de aproximação comunitária para que elas possam ser enfrentadas, desde que haja um diálogo intersecional.
Nesse contexto de pandemia, podemos contribuir, ainda, propondo práticas de acolhimento às famílias e às/aos estudantes, produzindo espaços de conversa, em formato de redes de apoio, diante de um cenário de perdas muito grandes e em várias dimensões.
 
Em 30 de setembro, foi publicado o Decreto n° 10.502 que institui a Política Nacional de Educação Especial no país. Quais os riscos dessa proposta?
O Decreto n° 10.502 tem muitas inconstitucionalidades, o que explica o grande número de Projetos de Decretos Legislativo (PDL) que estão, tanto na Câmara dos Deputados, quanto no Senado, solicitando a sua sustação. Além de haver, ainda, uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) e de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no sentido da revogação desse decreto. A proposta retoma o Modelo Biomédico da deficiência, entendendo-a como um problema do indivíduo que deve ser avaliado e tratado com uma perspectiva contrária à do Modelo Social que compreende os corpos, as funcionalidades e as subjetividades cognitivas como características plurais. 
Como conceito, o modelo biomédico não considera fatores psicológicos e sociais, inclui apenas fatores biológicos. Contudo, para mim, o que produz a deficiência é a interposição de barreiras à existência digna de pessoas que vivem em impedimentos físicos, sensoriais, mentais e intelectuais. A retomada da compreensão biomédica da deficiência, utilizada na metade do séc. XX, representa muitas perdas, inclusive para a pessoa deficiente que, novamente, é posta no lugar de quem nasceu errado e precisa ser “consertado”.
Outro risco é para a possibilidade de segregação das pessoas com deficiência, a partir de uma avaliação na escola, prevista no Decreto, que informa se a criança está ou não se adequando àquele ambiente e, também, beneficiando-se.  Juntando a compreensão equivocada da Lei nº 13.935/19; sobre a entrada da/o psicóloga/o na educação, em que algumas redes ainda acreditam que o papel da Psicologia Escolar é, justamente, fazer essa avaliação da criança; com o Decreto n° 10.502 que fala, explicitamente, dessa avaliação para checar se a/o aluna/o com deficiência está apta/o para determinada instituição, a gente tem um terreno muito perigoso para a Psicologia. A avaliação seria feita por psicólogas/os e a elas/es caberia dizer se determinada criança com deficiência deve ou não estar na escola regular. Para a Psicologia, isso significa uma perda da sua identidade e função social, além de ser uma perda muito grande para a população em geral, onde os processos inclusivos dizem respeito ao enriquecimento das experiências de convivência entre todas as pessoas, sejam elas com deficiência ou não.
 
Na sua opinião, educação pode ser o primeiro passo para a construção de uma sociedade inclusiva e anticapacitista? De que forma a Psicologia pode contribuir nisso?
Eu não entendo que a educação seja o primeiro passo, mas acho que os processos sociais são concomitantes e nós precisamos trabalhar em várias dimensões ao mesmo tempo. A educação não tem uma função mais ou menos importante de outras políticas e dos outros direitos. Entendo que a Educação tem que fazer parte de um projeto societário que é inclusivo e anticapacitista, necessitando se articular a outros direitos, assim como a política de Educação tem que se articular a outras políticas também. 
A/O psicóloga/o, onde quer que esteja, precisa ter esse imperativo ético de que não trabalhamos para excluir e nem classificamos para agregar. O que fazemos é reconhecer as formas de expressão da pluralidade humana e encontrar estratégias, recursos e apoios para que essas pessoas com deficiência tenham lugar no mundo.