ARTIGO

 

Psicologia e Direitos Humanos no Brasil de hoje

Urgência. Essa parece ser a palavra que melhor cabe quando o assunto é direitos humanos no Brasil de hoje. É flagrante como as violações e os retrocessos estão cada vez mais presentes nos campos de atuação de psicólogas e psicólogos em um dos piores momentos relativos a essa temática em nosso país. Se por um lado é mais frequente e notório para quem trabalha em serviços das políticas públicas – as quais vêm sofrendo tantos revezes diários que ficou impossível listar aqui –, é inegável que o impacto dessas violações afeta também o trabalho nas mais variadas instituições, organizações, na clínica e em outras áreas. É fundamental, portanto, problematizar esses efeitos na produção de subjetividade e interrogar a própria Psicologia em relação aos nossos saberes e práticas cotidianas – entendendo a subjetividade como um processo que não está dissociado de fatores sociais, históricos e políticos.

O mandato social que foi construído ao longo do século para a Psicologia é o de atender a demandas adaptacionistas e normalizadoras, colocando-se quase sempre como “neutra” e, no lugar de “especialista da subjetividade”, a serviço de correções de supostos desvios, curas de patologias, resolução de conflitos, apoio técnico para processos punitivos, apaziguamento de forças revoltosas e assim por diante. Cheias de boas intenções e em nome de “melhorias” para a sociedade, muitas práticas psi reproduzem esse mandato, crendo estar contribuindo para os “direitos humanos”.

Importa notar, porém, que essas práticas psicológicas estão atravessadas por concepções (de subjetividade, de saúde, de sociedade, de justiça, de política, de saber “verdadeiro”...) que tendem a traçar uma equivalência entre sujeito e indivíduo, tomando o “homem” como ser essencializado, histórico, separado da dimensão coletiva do social – compreendida aí como âmbito de misturas perigosas, imprevisibilidades, desordem.

O mesmo acontece com uma noção sedentária e hegemônica de direitos humanos. Ao lançarmos uma mirada crítica, percebemos que eles estão calcados nos ideais da Revolução Francesa, e em realidade têm sido reservados para as populações mais privilegiadas desde sua criação. Tomados em sua perspectiva histórica, tanto o humano quanto os direitos são construções das práticas sociais em determinados momentos.

E se nos apropriássemos dos direitos humanos e da Psicologia de outras maneiras? Os direitos humanos não correspondem, necessariamente, às meras letras de uma bela declaração universal burguesa, branca, estática, conjunto de mandamentos a serem cumpridos; são, isso sim, mais uma força em jogo. O seu uso e seus sentidos podem ser esgarçados, assim como os da própria Psicologia. Além de ferramentas estratégicas no campo da institucionalidade e na disputa da dimensão simbólica da sociedade, podem ser entendidos como inacabados, sempre em vias de feitura, pois precisam ser cumpridos, atualizados e criados em coerência com nossa realidade. Se suas origens e sua captura na lógica bionecropolítica nas últimas décadas são passíveis de crítica, nos tempos em que vivemos reganharam um caráter de resistência e desafio inadiável. A pauta dos direitos humanos, que já embasa nosso código de ética profissional, tornou-se agora uma tarefa básica, ampliada, e de todas e todos nós.

Vive-se um momento de novo fôlego das resistências locais, minoritárias e transversais a qualquer direito humano, como o feminismo, o antirracismo, os movimentos LGBTQI+ e os movimentos indígenas. Nas universidades públicas, experimentam-se efeitos das cotas étnico-raciais e sociais e das ocupações de 2016, que demandam descolonizar, hibridizar, enegrecer, feminilizar o pensamento e o fazer. Há uma convocação desejável, portanto, para estranhar e rejuvenescer o mandato social da Psicologia. Além de formar, é imprescindível sensibilizar e instrumentalizar profissionais atentos e dispostos ao enfrentamento de desigualdades socioeconômicas, étnico-raciais, de gênero, sexualidade e de práticas excludentes e violadoras.

A composição entre a nossa categoria e o campo dos direitos humanos se faz improrrogável, proporcionando o fortalecimento e a criação de outros pensares e fazeres aqui e agora. Quando trazidos ao rés do chão, os direitos humanos adquirem uma qualidade de ética, e não de moral, de modo a atravessar nossas práticas como princípio constante, e não mais mero fim a se chegar. Que a Psicologia consolide nos direitos humanos uma perspectiva metodológica, conceitual e política de afirmação da vida: é urgente.

Alice De Marchi Pereira de Souza 
Professora adjunta do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e co-coordenadora da URDIR (Universidade, Resistência e Direitos Humanos) - Núcleo Multidisciplinar de Ensino, Pesquisa e Extensão/UERJ. É autora do livro Modulações Militantes por uma Vida Não Fascista.