DICAS CULTURAIS

O filme não estava aqui 

Não teríamos como iniciar essa resenha sem contar da dificuldade que foi conseguirmos acessar o filme. Limitados pelo excessivo cardápio que a internet oferece, do qual a era digital exalta e se orgulha, tivemos de trabalhar arduamente para encontrá-lo nos labirintos das plataformas virtuais. Brincamos que a experiência parodiava a versão do título em português: Você não estava aqui. Fomos descobrindo que parodiava muito além do que o título.

O filme, lançado no Brasil às vésperas da pandemia, dirigido pelo britânico Ken Louch (de “Eu, Daniel Blake”), é uma tradução ansiogênica do que muitos estão nominando “uberização da vida”: a face perversa das relações de trabalho ditadas pelo neoliberalismo global contemporâneo. A história de uma família nuclear que, desde que foi afetada pela primeira crise do neoliberalismo voluntariamente provocada contra si mesmo - a hipotecária de 2008 - foi impelida a se entregar à  aventura do trabalhador autônomo, livre para usufruir de seus ônus e bônus. Autonomia, porém, que se traduz na crueza da informalidade e do esgotamento perante a necessidade de sobrevivência em um capitalismo cada vez mais predatório. A família, então, materializa um sonho da personagem Abby Turner, na medida em que o trabalho lhes consome, são engolidos aos poucos pela areia movediça das dívidas cobradas pela sua “livre escolha”.

A narrativa conduz ao limite da contradição entre liberdade e carência de possibilidades no contexto da precarização das relações de trabalho, sugerindo como síntese deste processo um estado de aprisionamento que tem como material de suas grades o endividamento e a diminuição da seguridade social. O sofrimento psíquico passa a protagonizar os conflitos decorrentes das jornadas extenuantes, humilhações e falta de perspectivas. A filha Liza e o filho Seb tornam-se porta-vozes do definhamento dos pais. É possível que uma leitura apressada conclua que a ausência paterna ocasionada pelo excesso de trabalho produza as reações observadas nos filhos, porém, o que se denota é que, mais do que a ausência, a própria presença de um corpo já oco e quebrado pela exploração do trabalho é que produz os processos de adoecimento. 

Um filme forte e sensível sobre o nosso tempo e os modos de subjetivação contemporâneos. Um roteiro impecável que te conquista desde o início e que, ao final, propõe a nós a invenção de uma esperança ativa: nós que, sim, estávamos ali. 

Pablo Potrich Corazza – conselheiro Presidente da Comissão de Políticas Públicas do CRPRS.
Rodrigo Isoppo – assessor técnico de políticas públicas do CREPOP

 

Calibã e a bruxa

Durante o primeiro semestre de 2020 os feminicídios aumentaram 1,9% e, em 2019, 66,6% das vítimas de feminicídio foram negras. Além disso, em 2020 foram publicadas duas Portarias que vinculam aborto e policiamento. Diante desses fatos, merece destaque a análise peculiar que Silvia Federici realiza em “Calibã e a bruxa” sobre feminicídio e capitalismo. Ela sustenta que a misoginia (como o racismo) é estrutural no sistema capitalista; ao garantir a sua instauração, assumiu modalidades que persistem, naturalizadas, integrando esse sistema. Silvia salienta que, nesse processo, o corpo feminino foi submetido como parte da natureza colonizada e como máquina reprodutora da força do trabalho (um aspecto da acumulação primitiva que coloca a mulher numa sujeição não remunerada). Essa submissão foi imposta mediante estratégias extremamente violentas, como a caça às bruxas, a legalização do estupro e o controle da saúde feminina e da reprodução. As mulheres incriminadas como bruxas foram selecionadas entre não casadas (ou não desejadas), velhas, pobres, praticantes do controle da natalidade e participantes de levantamentos contra o novo sistema. A leitura deste livro brinda narrativas de resistência feminina em meio a contextos extremamente adversos, e pode nos ajudar a reconhecer em nossos tempos alguns ataques sistemáticos.

Maynar Vorga – conselheira do CRPRS

 

A arte de amar

 

A arte de Amar, de Maria Sadowska, é uma biografia da polonesa Michalina Wislocka, uma médica ginecologista e sexóloga, autora do livro homônimo.  O filme versa sobre o modo de vida fora dos padrões de Michalina e sua dedicação em lutar pelo prazer das mulheres. Mais do que isso, a importância da realização sexual. A personagem nos convoca e nos contagia com sua militância por uma revolução sexual nos anos 1970 na Polônia comunista, onde tenta de todas as formas publicar seu livro no qual ensina sobre o corpo feminino e os prazeres sexuais - falando sobre clitóris, masturbação e orgasmo, além de sugerir posições sexuais defendendo que o amor é o sexo feito com a parceira/o que se tem desejo.

A narrativa traz o percurso de Michalina quando jovem até o momento que decide escrever seu livro. Teve um triângulo amoroso com sua amiga de infância e seu marido Stach. Sofre várias censuras por ser mulher numa sociedade patriarcal. Vale a pena conhecer a história dessa mulher incrível e à frente de seu tempo. 

Vinícius Pasqualin – conselheiro do CRPRS