PSICOLOGIA E PESQUISA


“Prática do Psicólogo na Atenção Básica – SUS: conexões com a clínica no território”
investiga as possibilidades e os desafios da prática clínica da/o psicóloga/o no cotidiano das
Equipes de Saúde da Família (ESF), a partir do trabalho interdisciplinar e da promoção de
saúde em duas comunidades da região metropolitana de Belo Horizonte.

 

Sobre a clínica
interdisciplinar

 

O estudo analisa a relação da/o psicóloga/o com essa estratégia, cartografando os efeitos de sua inserção na Atenção Básica (AB), enfatizando sua atuação no Núcleo de Apoio à Saúde da Família e identificando seus pontos de represamento e seus pontos de intervenção.
 
O processo de inserção da Psicologia nas políticas públicas, especialmente no campo da saúde na ESF, proporcionou às/aos psicólogas/os outras práticas clínicas para além do consultório e de uma prática que não privilegiasse apenas a lógica secundária e terciária da rede e/ou a clínica tradicional. 
 
Essa atuação requer abertura para outro tipo de exercício clínico, de um “setting” dentro-fora do espaço tradicionalmente concebido pela/o psicóloga/o, atenta/o às relações de força das micro e macropolíticas que se entrelaçam às políticas de saúde, que rompem sentidos e desarticulam o que está estabelecido. 
 
Estudar a atuação da/o psicóloga/o no NASF é também pensar os processos de subjetivação que se fazem nos encontros com o território, com as equipes, as/os outras/os profissionais e usuárias/os, embora a subjetividade não seja domínio exclusivo dessa ciência nem remeta exclusivamente a uma interioridade. 
 
Para pensar essas relações escolhemos a esquizoanálise, proposta por Gilles Deleuze e Félix Guattari, que dispõe da ferramenta metodológica da cartografia para mapear as práticas e seus efeitos produzidos nos encontros no território da AB. Esses autores entendem a subjetividade composta por vários elementos, sendo que se apresenta como complexa e processual e desloca-se por conexões externas ao sujeito.
 
Com caráter interdisciplinar, a EqSF insiste em uma intervenção compartilhada e de troca de saberes. Nesse contexto, no campo da AB, a Psicologia, muitas vezes, é chamada a acompanhar os casos de drogadição, alcoolismo, depressão, relação familiar, saúde mental, abandono de idosos, problemas escolares e violência familiar no território das famílias, dos indivíduos e das comunidades. Esse é um território ainda desconhecido de muitos de nós, mas amplo para uma atuação da/o psicóloga/o, sinalizando novos caminhos que tentamos trilhar nessa cartografia.
 
Caberia a pergunta: como a/o própria/o psicóloga/o, as/os demais profissionais da ESF, a gestão e as/os usuárias/os percebem a atuação da/o profissional de Psicologia? Observamos que vários desses elementos se articulam com uma atuação clínica tradicional e com tendências assistenciais curativas das/os profissionais da AB, inclusive da/o Psicóloga/o. 
 
As práticas intersetoriais estão articuladas à estratégia de produção de saúde, de modo a se pensar na sua promoção como qualidade de vida da população. Isso envolve todas as políticas públicas no sentido de responder às necessidades sociais conectadas à saúde, facilitando a integralidade da atenção. 
 
Observamos uma dificuldade concreta do processo de trabalho, que contribui para priorizar o atendimento clínico na prática da/o psicóloga/o dentro da UBS, com maior ênfase na lógica assistencial (modelo curativo-individual) em detrimento da prática coletiva do matriciamento do NASF. 
 
A/O psicóloga/o parece guardar expectativa em fazer psicoterapia nas UBS muito mais do que lidar com a complexidade dos territórios da AB, nos quais os processos de subjetivação se conectam e a produção de subjetividade está transbordando, oferecendo uma multiplicidade de linhas conectáveis e também próximas de uma atenção psicológica de qualidade aos indivíduos e grupos que conecta aos elementos de subjetivação nos territórios.
 
Percebemos que a prática na AB muitas vezes é reducionista e disciplinar. Isso quer dizer que há uma necessidade, no contexto do apoio matricial, de se praticar a interdisciplinaridade que envolve várias profissões da área, inclusive a Psicologia, no que se refere à compreensão e à intervenção de uma clínica diferenciada, uma clínica cartográfica. Esta, pensada como exercício de invenção, estaria disposta a questionar os princípios tradicionais da prática privada, voltada para um sujeito universal e a-histórico.
 
As práticas multidisciplinar, interdisciplinar e transdisciplinar, observadas no campo da AB, tentam rastrear os planos de forças presentes nessas práticas. Constatamos o interesse por todas as formas previstas de modelos de práticas nas cidades pesquisadas. No entanto, como observamos, a rede de saúde se fixa, principalmente, na prática multidisciplinar que já vem acontecendo a partir da implantação do PSF com as equipes multiprofissionais. Há, também, experimentações na prática interdisciplinar com a presença do NASF, e algumas experimentações da prática transdisciplinar como sinais de transformações mais intensas.
 
Vemos, assim, a criação de zonas de indeterminação das disciplinas, nas quais acontece algo que não pertence a uma formação específica, mas a um espaço trans, “entre”, que propicia agenciamentos que podem levar a uma outra prática com a/o usuária/o. 
 
A relação da prática transdisciplinar foi observada nessa entrevista entre a psicóloga e a terapeuta ocupacional. Essa prática emerge do plano de forças do coletivo e ocasiona a busca por uma troca de saberes com base na diferença; não em uma simples troca de conteúdos, mas na agitação em que se perde a rigidez da identidade, levando os saberes heterogêneos a se agenciarem em um novo saber.
 
A participação da Psicologia na política de saúde, como outro campo de saber, só se justifica numa relação de interconexão com outros saberes. E é nessa conjunção/disjunção do agenciamento dos distintos conhecimentos que se pode experimentar a invenção da produção de saúde e a produção de subjetividade. Trata-se de transpor as territorialidades conservadoras impostas nas relações disciplinares de entrecruzamentos do saber e do poder e atravessá-las em todos os territórios possíveis: da formação, entre os profissionais (interdisciplinaridade), da participação das comunidades e da gestão dos cuidados.
 
Concluímos que a complexidade da rede SUS e sua expansão apontam para desafios na inserção da Psicologia na AB articulada ao NASF e para a necessidade de contribuir para potencializar sua atuação no plano ético-político.
 
 
MARTA DE LIMA ALEXANDRE
martalimaalexandre@gmail.com
 
ROBERTA CARVALHO ROMAGNOLI
robertaroma@uol.com.br
 
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Psicologia.
 
 
Artigo publicado na Revista Contextos Clínicos v. 10, n. 2 (2017).
Disponível na íntegra em http://bit.ly/2xDt2gG.