REPORTAGEM ESPECIAL

 

Onde está a luta dos povos indígenas na tua Psicologia?

Os princípios fundamentais do Código de Ética profissional das/os psicólogas/os indicam o compromisso da Psicologia com o social, com a promoção da liberdade, da dignidade, da saúde e da integridade das pessoas e coletividades. A luta pela equidade e pela garantia dos direitos é, portanto, um compromisso ético-político da Psicologia. Considerando isso, é dever da profissão se comprometer com a luta dos povos indígenas.

“O trabalho da Psicologia deve ser articulado aos modos indígenas de ser, viver, pensar e agir, às medicinas tradicionais e às cosmologias. Portanto, é fundamental manter em vista o questionamento: onde está a luta dos povos indígenas na tua Psicologia?”, ressaltam Rejane Paféj Kanhgág, neta de Domingas, filha de Maria Kairu, mãe de Kafág e filha da floresta, psicóloga mestranda em Psicologia Social e institucional pela UFRGS, e Júlia Castro Martins, psicóloga residente em Saúde Mental Coletiva (UFRGS) na Área Técnica de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas e na Equipe Multidisciplinar de Saúde Indígena de Porto Alegre.

Vanessa Terena, psicóloga indígena (CRP 14/07450-9), conselheira do Conselho Regional de Psicologia do Mato Grosso do Sul, integrante da Articulação Brasileira dos Psicólogos Indígenas (ABIPSI), e que trabalha com questões de identidade indígena, racismo e saúde mental indígena, questiona o modo como a profissão foi sendo construída ao longo do tempo.

“Como produzir uma prática psicológica sem incluirmos mais de 300 povos pertencentes a este país? Há mais de 50 anos a Psicologia impõe seu conhecimento eurocêntrico em nosso território, sem contemplar e considerar nossa pluralidade. A Psicologia precisa ouvir os povos originários, suas demandas cada vez mais crescentes de violência e privação de direitos”.

Para Thaynara Sipredi, psicóloga (CRP 01/19721), indígena do Povo Xerente, integrante da ABIPSI e da Comissão de Raça e Povos Tradicionais do CRP DF e da Comissão de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia, a Psicologia deve ter profissionais preparadas/os para lidar com as demandas dos povos indígenas, presentes em todos os espaços, seja nas aldeias ou nas cidades. “A Psicologia precisa ser repensada, por ainda ser uma ciência e profissão que em sua maioria é branca, que estuda teóricos brancos, que reproduz ideias estereotipadas, racistas e preconceituosas de nós, povos indígenas. Diante disso, fica impossível suas/seus profissionais conseguirem realizar uma escuta qualificada e ética. A Psicologia precisa se aproximar dos povos indígenas e escutar o que esses povos dizem, aprender e compreender os outros modos possíveis de viver, entendendo as diversidades e especificidades de cada povo”.

Diante dessa realidade, a questão da formação de psicólogas/os é apontada pelas entrevistadas como algo fundamental para essa mudança da profissão. “É necessário que os cursos tenham mudanças em seus currículos e, de preferência, que se tenham indígenas ensinando, que mais indígenas ocupem, participem de espaços importantes dentro da Psicologia. Nada sobre nós, sem nós”, lembra Thaynara.

Rejane e Júlia também reforçam a ideia de que a Psicologia precisa ser decolonizada, superar a perspectiva eurocentrada, supremacista branca e cisnormativa. “Ela deve ser capaz de considerar as múltiplas formas de existências, de ser e de viver. Ao contrário de uma Psicologia ocidental-colonialista ainda muito ensinada nas universidades, para os povos indígenas, ouvir vozes, por exemplo, representa uma conexão com os guias espirituais, uma representação de saúde, e não de doença. É necessário que ‘a’ Psicologia se amplie para ‘as’ Psicologias, considerando os vastos saberes indígenas”.

Para oferecer uma escuta de fato inclusiva, a Psicologia precisa, para elas, ser sensível às diferenças, respeitando as especificidades culturais. “Não podemos impor o nosso conceito de saúde ou de bem estar para o outro. Atuar junto aos povos indígenas requer conhecer e respeitar as cosmologias, modos de vida e redes locais. Quando a atuação se refere ao contexto das aldeias, é necessário compreender a etnologia e orientar-se ao autocuidado comunitário, conhecer a organização da aldeia e quem são as referências de cuidado para a pessoa e para a comunidade. Assim, a escuta deve atentar-se ao contexto intercultural e às diversidades indígenas, sendo capaz de olhar para o que de fato produz saúde para os povos, como os encontros coletivos, os cantos e danças, as pinturas, os ritos e as comidas típicas”.

Para elas, o racismo estrutural e a necropolítica conduzem um projeto colonial que visa impedir o protagonismo dos povos indígenas, bem como as suas possibilidades de ser e de viver. Para barrá-lo, é necessário dar voz aos povos indígenas e tecer redes para compor e fortalecer essa luta. “Não somos iguais, partimos de lugares completamente diferentes e isso ainda hierarquiza a sociedade e as oportunidades. É essencial que as ações afirmativas sejam propostas e garantidas em todos os âmbitos institucionais, para que os espaços sejam pluralizados e possam assim operar em vista de um futuro possível mais justo e equânime”.

Mais do que apoiar a luta indígena, a Psicologia precisa honrar seu compromisso ético-político na promoção da dignidade humana e da cidadania e isso demanda decolonizar, repensar as práticas e discursos historicamente produzidos e enraizados na sociedade. “É necessário reorientar as perspectivas da Psicologia aos conhecimentos diferentes daqueles preconizados pelo imaginário colonial e demais concepções dominantes, provocando deslocamento nos processos de subjetivação, diante das desigualdades étnico-raciais”, destacam Rejane e Júlia.

À Psicologia cabe compreender que a subjetividade é formada e atravessada pela cultura. “Ouvir o que os povos indígenas têm falado, respeitar a cultura e os saberes, que são tão importantes quanto os saberes acadêmicos”, afirma Thaynara. Já a sociedade precisa conhecer e reconhecer a história do próprio país e o quanto os povos indígenas foram e são violentados, invisibilizados desde o processo de invasão. “Repensar esse modelo de desenvolvimento que visa o bem-estar de poucos, e entender que existem outros modos de viver em que esse bem-estar é pensado”.

Saúde mental dos povos indígenas

A saúde mental dos povos indígenas é um tema que precisa ser debatido por toda categoria. “A taxa de suicídio entre indígenas é cinco vezes maior do que entre pessoas brancas e negras. As violências cometidas em 1500 não acabaram, foram apenas remodeladas e se tornaram mais sofisticadas. Pensar nessa saúde mental é buscar compreender como todos esses anos de invasão afetam cada povo indígena. Para se falar da saúde mental dos povos indígenas precisamos falar de terra, território, natureza, desmatamento. Enfim, falar sobre como o racismo e as ideias estereotipadas que nos aprisionam a um ideal imaginário de 1500”, afirma Thaynara Sipredi.

Rejane Paféj Kanhgág e Júlia Castro Martins explicam que o entendimento de saúde mental para os povos indígenas engloba vários aspectos mais amplos da saúde, que estão todos ligados entre si: o corpo, a mente, a espiritualidade e o território. “Quando uma parte adoece, o todo está afetado, pois se tudo ao redor estiver adoecido, vamos adoecer também. Não é possível a promoção da saúde mental sem a garantia do direito ao território, do direito à vida indígena. Alguns dos principais aspectos de sofrimento apontados por lideranças indígenas envolvem a falta de acesso à terra, as condições adversas para o exercício de modo de vida tradicional, o preconceito e o racismo, os processos de alcoolização e demais violências”. Nesse sentido, são necessárias estratégias terapêuticas de valorização da identidade cultural, de incentivo ao autocuidado comunitário, atividades coletivas, esportivas e de bem viver nas aldeias. “Para pensar as questões de saúde mental no contexto indígena é necessária uma saúde mental coletiva, que supere a dicotomia entre ‘saúde física’ e ‘saúde mental’, dialogando com os saberes, práticas e cosmovisões dos povos indígenas, visando promover o cuidado integral com a potência do coletivo”.

Pandemia evidencia descaso com a população indígena

A pandemia da Covid-19 evidenciou ainda mais o descaso do poder público com essa população e trouxe à tona a privação de direitos básicos, como a falta de água potável, saneamento básico, precário acesso à saúde, assistência social, educação ou vacina.

Segundo dados da Articulação de Povos Indígenas do Brasil (APIB), até o final de setembro de 2021, 163 povos indígenas foram atingidos pelo vírus. “Na luta constante por seus direitos, muitas lideranças indígenas contraíram Covid-19 nas cidades. Além disso, um aumento do sofrimento psíquico, dos casos de autolesão e ideação suicida, uso prejudicial de álcool e violências, acometeram ainda mais os povos indígenas”, alertam Rejane Paféj Kanhgág e Júlia Castro Martins.

“A pandemia tornou mais visível o racismo contra indígenas e escancarou o projeto do atual Governo, que é de nos matar. No início da pandemia, muitos povos precisaram, por conta própria, criar barreiras sanitárias em seus territórios para evitar entrada de pessoas, como forma de evitar que o vírus chegasse aos seus territórios, as/os profissionais que atuam dentro dos territórios não tinham os EPIs necessários para se proteger e proteger os indígenas. Muitos anciãos e lideranças faleceram em decorrência da Covid, para nós cada ancião que se vai é uma biblioteca viva que se foi”, relembra Thaynara Sipredi.

 

Projeto de Lei 490/2007

De acordo com a Articulação de Povos Indígenas do Brasil (APIB), o PL 490/2007 é uma tese político-jurídica inconstitucional, segundo a qual os povos indígenas só teriam direito às terras que estavam sob sua posse em 5 de outubro de 1988. Os ruralistas querem que o ‘marco temporal’ seja utilizado como critério para todos os processos envolvendo terras indígenas, o que inviabilizaria a demarcação de terras que ainda não tiveram seus processos finalizados.” O Marco Temporal, por sua vez, retira o direito primordial dos povos indígenas, que é o direito à terra, ao território. A tese reconhece o direito à terra somente de povos que ocupavam o território até a promulgação da Constituição de 1988.

“Essa é uma investida de morte sobre a história de nossa terra. Estamos diante de um grande retrocesso. Tudo o que temos foi fruto da luta, de muito sangue derramado e muitas vidas perdidas. Para nós, o território não é produção/consumo, é algo sagrado. Essa luta deveria ser de todos, pois territórios e saberes estão sendo ameaçados. Nós resistimos para existir”, afirma Rejane Paféj Kanhgág.

Para Vanessa Terena, o PL 490/2007 apaga o fato de que os povos indígenas são originários, ou seja, estavam aqui antes da invasão. “Ao longo da história sofremos um apagamento desumano e, caso esse PL seja aprovado, perderemos o que é mais sagrado para nós, nosso território. A sociedade consequentemente terá que lidar com a escassez, com o fim de recursos e com a sobrecarga da nossa mãe, que sem a proteção que ocorre em nossas comunidades estará cada vez mais vulnerável”.

Apesar de toda a sociedade ser impactada pelo Projeto, são os povos indígenas que podem perder seus territórios, seus lugares sagrados e ficarem impedidos de poder viver sua cultura. “A sociedade é impactada porque os lugares que são reservas indígenas, são os lugares mais preservados. Embora a sociedade se relacione de uma forma diferente com a natureza, entendendo muito mais como mercadoria, precisam dela para continuar se mantendo vivos”, explica Thaynara Sipredi.

-> Leia entrevista de Rejane Paféj Kanhgág e Júlia Castro Martins na íntegra.