PERSPECTIVA

 

A regulamentação da psicoterapia em debate

A psicoterapia deve ser uma atividade privativa de psicólogas/os? O debate é antigo e, periodicamente, novos projetos de leis são lançados com a proposta de regulamentar a atuação nesse campo. Com o objetivo de conhecer a opinião da categoria, o Conselho Federal de Psicologia (CFP), realizou, neste ano, um seminário e lançou uma Consulta Pública sobre o tema. Os resultados serão divulgados em breve no site e redes sociais do CFP. Regionalmente, a Comissão de Processos Clínicos e Psicossociais do CRPRS vem promovendo encontros para refletir sobre a questão. 

Nesta edição da EntreLinhas, convida¬mos a psicóloga Fernanda Serralta (CRP 07/6188), mestra em Psicologia, doutora em Psiquiatria, docente e pesquisadora da Unisinos, onde coordena o Laboratório de Pesquisa em Psicoterapia e Psicopatologia, a debater o tema.

Na sua opinião, a psicoterapia deve ser uma atividade privativa de psicólogas e psicólogos?

Fernanda Serralta – As psicoterapias “bona fide”, isto é, de boa-fé são aquelas orientadas por um princípio teórico coerente. São tratamentos psicológicos, conduzidos por profissionais de saúde mental devidamente treinados, que integram métodos clínicos e atitudes interpessoais para ajudar as pessoas a modificar seus comportamentos, cognições, emoções e/ou outras características pessoais na direção determinada por elas mesmas. O sofrimento psicológico e o desejo de mudança que leva as pessoas a buscar esse tipo de ajuda incluem questões psicológicas, assim como condições psicossociais e orgânicas que produzem impactos psicológicos em diferentes níveis. Psicoterapia é, portanto, um campo bastante amplo e diverso. Estimase existirem mais de 500 tipos de psicoterapia. Como é impossível estudar todos, os esforços têm se concentrado nos modelos mais praticados: comportamentais, cognitivo-comportamentais, psicanalíticas e/ou psicodinâmicas e humanistas. Todas essas abordagens possuem desenvolvimentos históricos na Psicologia Clínica.

No entanto, se de um lado é verdade que a Psicologia contribuiu para desafiar as concepções tradicionais restritivas de psicopatologia e para aprimorar as intervenções psicoterapêuticas ao longo do tempo, é inegável que movimentos internos da própria Medicina e da Psicanálise foram copartícipes dessa evolução. Não é de se estranhar, portanto, que alguns modelos psicoterapêuticos que conhecemos tiveram entre seus idealizadores médicos psiquiatras. Esse é o caso da Terapia Cognitivo Comportamental, por exemplo. Há, ainda, a complexa situação da Psicanálise, um campo independente de saber e prática que não obstante tem influenciado fortemente a formação de psicólogas/os, uma espécie de teoria psicológica desenvolvida fora da Psicologia. Por esse motivo, alguns preferem o termo psicodinâmica para designar as teorizações psicológicas inspiradas na psicanálise. Além disso, como prática, alguns modelos específicos de psicoterapia são praticados por outras/os profissionais especializadas/ os, profissionais de serviço social e enfermeiras/os psiquiátricas/ os, por exemplo.

A questão é, portanto, mais complexa do que parece. Penso ser um tanto incoerente, até ingênuo, pretender restringir a psicoterapia à atividade de psicólogas/os. Considero que a valorização da psicoterapia enquanto campo de saber e atuação profissional das/os psicólogas/os deveria passar por mudanças na formação técnica e científica destes profissionais. A Psicologia como profissão não pode ser confundida com a psicoterapia. Vejo a psicoterapia como campo de atuação multiprofissional com desenvolvimentos específicos na psicologia. A formação global de uma/um psicoterapeuta exige estudo aprofundado, prática supervisionada e psicoterapia pessoal. Mais do que discutir a regulamentação da psicoterapia como prática privativa, deveríamos estar discutindo a formação continuada das/os psicólogas/os e a qualificação das suas práticas. O que se quer regular? Por que se quer regular? Como se quer regular? É perigoso propor e regulamentar uma prática sem uma discussão ampla e aprofundada sobre essas questões.

Quais cuidados são necessários ao se pensar na regulamentação da psicoterapia?

Fernanda Serralta – Vejo que a regulamentação da psicoterapia foi proposta como prática privativa da/o psicóloga/o sem justificativa coerente e descolada de uma reflexão histórica, teórica e técnica sobre o assunto. No nosso País, a psicoterapia, infelizmente, possui um status pouco científico e, consequentemente, é bastante desvalorizada, muitas vezes confundindo-se com práticas alternativas, sem fundamentação científica. Acredito que muito da fragilidade desse campo provém das nossas próprias ações: definimos psicoterapia como arte, não reconhecemos instituições de formação idôneas, não certificamos as/os psicoterapeutas, fazemos pouca pesquisa em psicoterapia, e sistematizamos pouco os conhecimentos advindos da nossa prática. Nesse sentido, estamos falhando em levantar questões essenciais como o que define e delimita a boa prática em psicoterapia. Há questões específicas às diferentes abordagens, mas há parâmetros gerais que poderiam nortear uma definição de um consenso nacional nesse sentido. Regulamentar não implica necessariamente em dizer quem pode ou não pode legalmente praticar psicoterapia. Consigo imaginar distintas maneiras de regulamentar a psicoterapia entre psicólogas/os. Pessoalmente sou bastante favorável à ideia de acreditação entre pares, uma espécie de auto-regulamentação. É preciso considerar que, quando se fala em regulamentação, não se trata de tudo ou nada. Há regulamentações em diferentes níveis, tais como a regulamentação legal da prática, a acreditação ou certificação (legal ou autorregulada) da prática, da formação, da titulação ou especialidade, e assim por diante. Nessa discussão, como já apontado, é necessário ter clareza do que se quer regular, para que e como. Os eventuais riscos precisam ser considerados em relação aos benefícios. De modo geral, os países que fizeram iniciativas em direção à regulamentação da psicoterapia, o fizeram principalmente para a) aplicar racionalmente recursos do sistema de saúde público e/ou privado; b) combater práticas não qualificadas e/ou sem base em evidências; c) definir limites éticos de atuação; d) garantir acesso equitativo da população a serviço qualificado baseados em evidência científica por meio dos planos e serviços de saúde. Isso significa que a regulamentação da psicoterapia visou fundamentalmente a qualificação da prática e o cuidado com a saúde mental da população. Acho importante não esquecer que a psicoterapia é prática clínica. Não é uma panaceia. Não se aplica a todos e não é isenta de risco. Devido à natureza confidencial do encontro terapêutico, os clientes são vulneráveis. Quando a prática é de alguma maneira avaliada por terceiros, tende a ser mais cuidadosa técnica e eticamente. Por outro lado, a extensão e o tipo de regulamentação proposta podem comportar riscos diversos. Por exemplo, determinadas práticas poderiam ser supervalorizadas em detrimento de outras por motivos escusos; grupos mais influentes poderiam utilizar sua posição para impor parâmetros em benefício próprio. Avaliar os riscos é fundamental para a criação de mecanismos de proteção a eles.

Poderia indicar modelos de regulamentação da prática de psicoterapia utilizado em outros países que poderiam servir de exemplo ao Brasil?

Fernanda Serralta – Como pesquisadora tenho convivido com profissionais de diferentes países que são também estudiosos da psicoterapia. Inevitavelmente algumas diferenças saltam aos olhos. Enquanto no Brasil temos uma formação ampla e generalista, com viés aplicado, em muitos países europeus e nos Estados Unidos a formação é mais científica e fundamentada em processos psicológicos básicos e áreas clássicas de estudo. Em vários desses países, a habilitação para a prática da psicoterapia é em nível de pósgraduação universitária – com ou sem parceria com instituições profissionais. Desse modo é muito difícil comparar as realidades. Países como França e Espanha não possuem qualquer restrição a respeito da prática da psicoterapia. No entanto, na Espanha há um sistema de acreditação das/os profissionais qualificadas/os (em geral, médicas/ os e psicólogas/os) por parte de órgãos nacionais de classe, enquanto na França o título de psicoterapeuta é protegido – só médicas/os e psicólogas/ os com formação em nível de pós-graduação, ou psicanalistas, podem assim denominar-se. Na Alemanha, a exemplo da França, a lei regulamenta a titulação (quem é a/o psicoterapeuta), mas não a prática (a psicoterapia). Naquele país, a/o psicoterapeuta é uma/um profissional de saúde. Embora exista uma licença menos rigorosa para se praticar psicoterapia em âmbito privado, para ser psicoterapeuta (e, por conseguinte, credenciado no forte e universal sistema de saúde alemão) é necessário curso de pós-graduação. Nos demais países da América Latina, a realidade é muito semelhante à nossa. Em geral, não há qualquer forma de regulamentação e a formação da/o psicóloga/o no nível de graduação é bastante orientada para a prática, com níveis variados de formação científica associada. Ainda que sejam experiências e realidades muito diferentes, é fácil constatar que nos países com menos restrições na formação de psicoterapeutas (como é o nosso caso) há mais variabilidade nas práticas. Se de um lado isso significa maior liberdade de atuação, de outro pode implicar em perda de efetividade e credibilidade, além de riscos éticos aumentados.