DICAS CULTURAIS

Torto arado
 
“A parede de terra, do barro que era o chão de Água Negra, voltou a ser terra de novo. Nasceram ervas e flores minúsculas em meio à umidade que surgia com o orvalho e com a chuva que caía quando era da vontade dos santos. Fiquei atenta a tudo o que acontecia, sabia que nada retornaria. Olhei com certo encantamento o tempo caminhando, indomável como um cavalo bravio.”
 
Encontramos no livro “Torto Arado”, de Itamar Vieira Júnior, a história de um Brasil colonial, misturada às lembranças dos personagens. Entrelaçando memória e ficção, o autor toca em pontos nos quais insistimos em apagar, ou mesmo, esquecer, mas que tomam forma na narrativa, como as casas de barro, refeitas a cada chuva, testemunhando as vidas privadas do direito a terra e ao lugar. Assim, o autor nos coloca em contato com uma temporalidade na qual o passado ainda precisa ser historiado no presente, onde não se trata apenas de lembrar, mas, também, reescrever a história.
 
Nessa relação intrínseca entre o vivido e a memória, o autor nascido em Salvador, geógrafo e doutor em estudos étnicos africanos, vai tecendo um romance contagiante e sensível, em uma narrativa onde vozes esquecidas de um país múltiplo e diverso, que se imaginou unívoco, tomam a palavra produzindo novos elos entre história e memória, entre os sujeitos na multiplicidade de culturas.
 
Luciane Susin
Psicanalista (CRP 07/08296), psicóloga da Secretaria Municipal da Saúde de Porto Alegre, membro da APPOA e Instituto APPOA.
 
 

 

A filha perdida
 
A maternidade é horrível e maravilhosa, ao mesmo tempo. Mas podemos dizer isso? Quando podemos, um peso, uma tonelada, se solta. Reiteradas vezes no filme, a quietude de Leda é interrompida, sofre um abalo, uma, duas, três, quatro vezes. O ritmo da invasão é importante. Quando Leda encontra a mãe jovem na praia, um jogo com seu próprio passado se atualiza. Elas se olham. O que veem? Os abalos e as interrupções na vida de uma mulher que se torna mãe são contínuos, dolorosos, por vezes desesperadores, mas isso não impede que sejam ao mesmo tempo, inefáveis, sublimes, transformadores. 
 
O filme “A filha perdida” é a adaptação de um dos quatro livros de Elena Ferrante, que compõe a chamada “série napolitana”1. Livros que, embora ainda não tenha lido, tratam de mulheres que desejam e o desconcerto do mundo diante desse acontecimento2. A polêmica causada pelo filme “A filha perdida” gira em torno do desejo feminino, que como sabemos de sua própria estrutura, oscila, e coloca em cena as ambivalências dos sentimentos de amor e ódio que são constitutivos do humano. Nós psicólogas/os sabemos disso. Mas não o grande público. Ali, uma mulher, mãe, que deseja para além da maternidade, coloca em cena o que talvez seja o maior tabu entre nós: o fato de que a maternidade é difícil, por vezes beira o insuportável, e pode levar a sofrimentos indizíveis, e por isso mesmo, adoecedores. A denúncia que o filme faz, ao dar visibilidade e voz para a experiência do mal-estar na maternidade, revela que esse sofrimento é pouco tolerado socialmente, e as mulheres que ousam falar disso são julgadas, ofendidas muitas vezes de loucas, capazes dessas “coisas horrorosas”3 (referindo-se ao abandono por três anos das filhas pela personagem Leda). Em resumo, não temos permissão para sofrer na experiência da maternidade, porque isso ofende a imagem idealizada que ela carrega, retirando a própria humanidade das mulheres. O que vemos por trás dessa polêmica são estruturas sociais de dominação muito arcaicas e operam nas subjetividades até mesmo das mais arrefecidas feministas. Portanto, ao adentrar no universo de A “filha perdida”, é preciso saber que estamos diante de um território que é também o do político. Exige sensibilidade, delicadeza, e a certeza de que é preciso entrar em contato com o que ainda não sabemos de nós. A atriz que dirigiu o filme, Maggie Gyllenhaal diz que ler o romance a fez sentir como se um pedaço secreto de sua experiência como mãe, amante e mulher no mundo estava sendo contado em voz alta pela primeira vez. “Ela (Elena Ferrante) escreve coisas que a gente pensa, mas não ousa dizer.” A escritora italiana cuja identidade permanece desconhecida (seu nome é um pseudônimo) diz que “As coisas mais difíceis de falar são as que nós mesmos não conseguimos entender.”4 Aqui ela nos revela a dimensão de não sabido que nos move, e é justamente essa condição que contém em si uma potência de transformação. Nos movemos em direção ao que ainda não sabemos da gente, do outro, algo que nos interpela, que nos indaga. A beleza desse filme é afirmar com coragem esse sentimento convulsivo de viver os abalos da vida, as experiências reais, contraditórias, boas e ruins, ao mesmo tempo e poder tomar uma distância dos ideais inatingíveis, que só servem para produzir sofrimento e sentimentos de inadequação. Aqui em ‘A filha perdida’, temos esse presente de vermos e ouvirmos talvez, pela primeira vez, o que muitas vezes sentimos e pensamos, mas que nunca pudemos dizer em voz alta, talvez somente no consultório de um analista. E nós, psicólogas/os sabemos o quanto é libertador e transformador atravessar as experiências sem amputar nenhuma parte daquilo que sentimos.

1 O primeiro livro, A Amiga Genial, o segundo, A História do Novo Sobrenome, em terceiro História de Quem Foge e de Quem Fica e por último, História da Menina Perdida.
2 https://valkirias.com.br/tetralogia-napolitana-o-epico-de-elena-ferrante/
3 Comentário que recolhi das redes sociais;
4 https://www.intrinseca.com.br/livro/692/
 
 
Andrea Fricke Duarte
Psicanalista (CRP 07/ 16.210), artista, pesquisadora, professora universitária. Doutora pela UFRGS com período na EHESS (Paris).
 

 

Alienação e liberdade
 
Lançado pela Ubu editora em 2020, o livro “Alienação e liberdade: escritos psiquiátricos” do intelectual negro Frantz Fanon (1925-1961), com um prefácio “encarnado”, por Renato Noguera, é um convite a descolonizar o pensamento.
 
Recentemente traduzido e publicado no Brasil, trata-se de um livro que “já nasce mais velho” fecundando uma ancestralidade mesmo que invisibilizada por séculos.
 
Fanon vê a saúde mental como um campo orgânico que sangra, gangrena ou até amputa-se, coletivamente, mas não precisa. Ele propõe repensar as nossas práticas racializando-as e, considera que um mergulho profundo na cultura, pode transgredir o racismo (e branquitude) nas relações.
 
É preciso romper com a colonialidade, que utiliza suas contenções mecânicas para suturar instituições em uma lógica racista, punitiva e adoecedora. 
 
O convite é desnaturalizar para inovar, recusando estigmatizar e silenciar. E assim, “escutar” nos encontros, pessoas “estranhadas” em suas formas de manifestar liberdade e desejos.
 
Boa Leitura!
 
Ezequiel Amaral
Psicólogo (CRP 07/36.215) preto e gay, poeta, ilustrador e mestrando em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS.