ESPECIAL
Sankofar percursos: os 60 anos de uma Psicologia na busca do bem viver e antirracista
Primeiramente, agradeço o convite da Entrelinhas de poder contar a minha relação com a Psicologia no sexagenário ano da profissão. Essa jovem senhora que há 16 anos me recebeu, não se cansa de me apresentar novas lições. E é por esse mesmo tempo que o meu fazer psicológico se atravessou com as relações raciais, e desde então venho acompanhando todas as suas transformações.
Pensar que a minha trajetória profissional é toda circunscrita pelas relações raciais. O meu primeiro espaço de trabalho foi na Organização de Mulheres Negras - Maria Mulher, onde tinham como foco do seu trabalho o atendimento às mulheres em situação de vulnerabilidade social e violência doméstica. E foi através destes trabalhos que fui aprendendo sobre as vicissitudes do racismo, suas formas de atuação e suas implicações na psique de todas as pessoas negras, além do que trabalho em coletivos, são muito mais fortes.
Matilde Ribeiro, assistente social e ativista política, destaca que entre os anos 1970 e 1980 foi o período em que as mulheres negras, oriundas de outras organizações do movimento social negro, passaram a se organizar e a formar outros coletivos.
“Resguardadas particularidades os movimentos feministas negro ressurgem no Brasil em meados dos anos 70 em plena ditadura militar tendo como eixos básicos a luta pela democracia, a extinção das desigualdades sociais e a conquista da cidadania”. (RIBEIRO, p. 446, 1995)
Não era uma luta fácil, mas apoiada no pensamento da intelectual Beatriz Nascimento o movimento natural que nós, negras e negros, temos em nos agruparmos, confirma “que o negro se unifica, se agrega, ele está sempre formando um quilombo [...] o nome disso em africano é união”.
[...] o processo de constituição de coletividades negras enquanto qualificadoras de um espaço, não se extinguiu em 1888 e não está restrito a territórios permanentes. O corpo negro plural constrói e qualifica outros espaços negros, de várias durações e extensões, nos quais seus integrantes se reconhecem. Para Beatriz Nascimento, a África e o Quilombo são terras-mãe imaginadas. (RATTS, 1974, p.60)
Se a melhor estratégia é o aquilombamento, foi no I Encontro Nacional de Psicólogas/os Negras/os e Pesquisadoras/es sobre Relações Inter-raciais e Subjetividade no Brasil (I PSINEP), ocorrido em 2010 em São Paulo onde me foi apresentado o vasto mundo da Psicologia e das relações raciais. Foi também quando tomei conhecimento da Resolução 018/2002, que estabelece normas de atuação para as/os psicólogas/os em relação ao preconceito e à discriminação racial.
E desde então tomei o compromisso profissional de sempre que possível pautar as relações raciais sempre que fosse pensar o exercício da minha profissão. Nesse mesmo evento produziu-se a “Carta de São Paulo” documento valiosíssimo que resgata e nos convoca todas nós psicólogas e psicólogos, ao compromisso que temos de fazer com que a Psicologia se responsabilize “pela superação da dívida histórica relacionada com as necessidades da população afrodescendente em nosso país, sobretudo no que diz respeito às intensas cargas de sofrimento historicamente impostas pelo racismo”. (Anpsinep, 2010)
Esta foi definitivamente uma experiência transformadora, participar daquele aquilombamento mudou as minhas perspectivas profissionais. E sedimentou o desejo de aprender cada vez mais sobre as formas de superar as implicações que o racismo presente em nossa estrutura social traz a constituição da nossa identidade, das nossas estratégias de autocuidado.
Enfim, considerar que o racismo atinge a todas e todos, provocando sofrimento psíquico e pedindo uma cura política e psíquica, a vivência em coletivos, a produção de conhecimento sempre considerando a perspectiva social e racial com dados desagregados, faz com que essas vivências marquem profundamente a profissional que sou hoje. Ao sankofar meu percurso e apontar os eventos marcantes, a fim de revelar alguns aprendizados mais significativos que tive, na direção de um presente e um futuro melhor, faço um exercício dolorosamente prazeroso.
Encerro com as considerações da filósofa, mestra e doutora em Educação, Adilbênia Freire Machado (2020, p. 6): “somos uma grande teia, onde passado e presente movimentam-se continuamente na busca da construção de um futuro melhor”. Foi no ir e vir da construção dessa teia por meio dessa “escuta ancestral”, que vamos reconstruindo novas formas de vida na busca do bem viver e por uma Psicologia antiracista.
Glaucia Maria Dias Fontoura
Graduada em Psicologia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (2006). Licenciada em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2012), Especialista em Políticas Públicas de Gênero, Raça e Promoção da Igualdade pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2014). Mestre em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2021) e Colaboradora da Comissão de Relações Raciais do CRPRS.