PSICOLOGIA E PESQUISA
(In)Consciência Negra na Psicoterapia: precisamos falar sobre microagressões raciais
O racismo impacta negativamente a saúde mental de grupos, estigmatizados, marginalizados e sub-representados – como a população negra no Brasil. Hoje em dia, já temos uma compreensão bastante robusta do racismo estrutural (a naturalização e normalização do racismo, criando iniquidades e injustiças) e do racismo institucional (os privilégios e desvantagens vividos dentro das instituições sociais – como a religião, a família, a economia, a política, a educação – a depender de qual grupo racial se pertença).
Também é evidente que há impactos do racismo interpessoal, explícito e deliberado, como uma perversidade decorrente dos preconceitos. Já se sabe, portanto, que o racismo adoece e que esse adoecer mascara o próprio racismo - proporcionando e, ao mesmo tempo, assegurando a manutenção do domínio que a própria violência racial sujeita os seus destinatários (Bicudo, 2010).
Como uma condição de adoecimento mental, o racismo (e suas consequências) é um fenômeno que não pode ser ignorado pela Psicologia e, no entanto, a pesquisa sobre o tema nas práticas psicoterapêuticas é incipiente. Ainda pouco se sabe como o racismo afeta o psiquismo dos sujeitos envolvidos (vítimas, perpetuadoras e vítimas-perpetuadoras), quais são as especificidades do fenômeno na pessoa considerando outras interseccionalidades como gênero e classe, de que forma a violência ocorre etc.
Nesse sentido, procurei me debruçar sobre o estudo do impacto das agressões racistas sutis, e muitas vezes inconscientes, que recaem sobre as pessoas negras nas interações cotidianas - as chamadas microagressões raciais (Sue et al., 2007), explorando esse fenômeno dentro das relações psicoterapêuticas. Pouco se sabe sobre como as microagressões raciais influenciam a díade cliente-psicoterapeuta, bem como a relação terapêutica. Ao considerar-se que o racismo é um fenômeno presente em todos os espaços e atravessando as mais diversas relações, é de se presumir que as práticas clínicas não estejam imunes ao fenômeno e que, dentro de uma estrutura social racializada, possam ocorrer práticas racistas inclusive em espaços que se propõe a promover cuidado em saúde mental acolhimento ao sofrimento psíquico. Aliás, infelizmente, é recorrente o relato de pessoas negras sobre sofrerem agressões racistas sutis, quer as deliberadas, explícitas ou conscientes, quer as involuntárias, implícitas ou inconscientes, perpetuadas por psicólogas e psicólogos no contexto da psicoterapia. Inclusive eu, enquanto paciente, já passei por experiências nesse sentido.
Assim, minha tese de doutorado, orientada pelas Dra. Denise Falcke e Dra. Fernanda Barcellos Serralta, tem como objetivo explorar o fenômeno das microagressões raciais contra pessoas negras na prática psicoterapêutica no Brasil. Este objetivo foi desdobrado em dois estudos empíricos e um ensaio teórico. O primeiro estudo visou compreender a experiência de pessoas negras em sofrer microagressões raciais na prática psicoterapêutica e interpretar os significados atribuídos a essa vivência. Já o segundo (em fase de análise quantitativa de dados) tem buscado investigar as atitudes de psicoterapeutas diante de situações de sofrimento decorrentes das experiências de racismo narrados por pacientes em psicoterapia, numa situação quase-experimental que expõe psicoterapeutas a respostas neutras/assertivas, racistas explícitas e racistas microagressivas. Como uma das grandes questões trazidas como dificuldade no manejo clínico do sofrimento de experiências de racismo é a ausência de referenciais que explorem práticas, os dois estudos serão integrados em ensaio teórico que buscará refletir sobre a atuação profissional multiculturalmente orientada e as habilidades especiais/específicas para exercer a psicoterapia com pessoas negras (Hook et al., 2013) enfatizando que raça, etnia e cultura influenciam como as pessoas pensam, comportam-se e definem eventos, bem como afetam o modo com que as pessoas ou grupos definem uma relação de cuidado ou ajuda.
A intenção desta tese é, portanto, nortear a Psicologia como ciência e profissão rumo a uma construção subjetiva e social plural, diversa, inclusiva e emancipatória das subjetividades, refinando a prática das e dos psicoterapeutas diante das pessoas negras que, invariavelmente, em algum momento vão trazer (de formal verbalizada ou não) aos consultórios as dores e sofrimentos das suas experiências de racismo.
Referência:
Bicudo, Virgínia L. (2010) Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo. Edição organizada por Maio, Marcos C. São Paulo, Sociologia e Política.
Hook, J. N., Davis, D. E., Owen, J., Worthington, E. L., Jr., & Utsey, S. O. (2013). Cultural humility: Measuring openness to culturally diverse clients. Journal of Counseling Psychology, 60(3), 353–366. https://doi.org/10.1037/a0032595
Sue, D. W., Capodilupo, C. M., Torino, G. C., Bucceri, J. M., Holder, A. M. B., Nadal, K. L., & Esquilin, M. (2007). Racial microaggressions in everyday life: Implications for clinical practice. American Psychologist, 62(4), 271–286. https://doi.org/10.1037/0003-066X.62.4.271
Thaíse Mendes Farias
Psicóloga clínica (CRP 07/28216), bacharel em Direito (UFPel) e Psicologia (UCPel), especialista em Psicologia e Sexualidade (UNIARA), mestra em Ciência Política (UFPel), doutoranda em Psicologia Clínica (UNISINOS). Conselheira do CRPRS e coordenadora da Comissão Gestora da Subsede Sul do CRPRS