RELATO DE EXPERIÊNCIA

O legado da Kiss para a Rede de Atenção Psicossocial

Sob qualquer ponto de vista, o incêndio na boate Kiss em 2013 foi um acontecimento disruptivo de grande violência, com repercussão individual, coletiva e social. Num piscar de olhos, a rotina e os projetos de futuro da cidade e da sua população foram suspensos. Uma grande reação de solidariedade afetiva e material foi mobilizada indicando que, de alguma forma, todos foram afetados pelo acontecimento.

Nesse cenário, um contingente expressivo de voluntários chegou à cidade, juntando-se aos profissionais envolvidos nas ações de saúde, segurança, comunicação, religiosidade, dentre outras. Cientes da gravidade do fato e do prolongamento das consequências, em menos de 24h foi aberto um espaço de acolhimento psicossocial à comunidade e às pessoas envolvidas diretamente. Sete grupos de trabalho foram constituídos para responder à multiplicidade de demandas: acompanhamento em ritos e funerais, nos hospitais, na UPA-SAMU, apoio matricial à Atenção Básica, atendimento 24h em saúde mental, supervisão clínica e gestão.

Na época, a rede instalada de atenção psicossocial em Santa Maria não contemplava as necessidades do município e não teria condições de absorver a extraordinária demanda que surgiu. A assinatura de um termo de compromisso tripartite designou Santa Maria como o ente responsável pelo planejamento e execução de ações junto à rede de saúde mental. Com esta formalização, cria-se o Acolhe Saúde e consolida-se um projeto de trabalho clínico institucional a curto, médio e longo prazos, baseado em dois eixos: acompanhamento clínico especializado e apoio matricial na Atenção Básica. 

O interesse pelas repercussões do incêndio alcançou a esfera acadêmica. Durante os primeiros anos, inúmeras pesquisas foram realizadas sobre luto, trauma, tratamento de queimados com equipe multiprofissional e gestão do cuidado no SUS, revelando a importância do tema para a formação acadêmica e educação permanente em saúde. 

As/os sobreviventes conseguiram preservar a vida, mas este ganho não foi sem perdas. Isso significa dizer que a condição de ser uma/um sobrevivente é um fardo com o qual é preciso lidar cotidianamente. O alívio de terem conseguido escapar do incêndio não é vivido em paz, ainda que se compreenda que se tratava de uma luta pela sobrevivência. Os familiares, por sua vez, sentiam culpa em meio à incredulidade, ao desespero e à revolta. Questionavam Deus, religião, Justiça, inclusive com relação a profissionais de saúde. 

Gradativamente, a rotina do Acolhe Saúde foi surpreendida pelo fluxo de demandas de urgência sem vinculação com o incêndio, oriundas de diversos pontos da rede de Saúde, da Assistência Social e da Educação. A redução progressiva das usuárias/os referidos ao incêndio da boate tornou possível ao serviço receber um novo contingente de pessoas desassistidas pela rede de Saúde, cujo sofrimento estava vinculado às situações de natureza traumática. 

A partir de 2015, este segmento ganha companhia de usuárias/os em quadro de luto e do contexto suicida, tornando-se a maior parte dos novos casos. Na perspectiva do modo de produção capitalista no qual vivemos e sobrevivemos, a experiência aguda de sofrimento torna-se cada vez mais frequente; ora tensionada por fatores internos (mazelas e subjetivas), ora pela determinação externa (sociedade, família, trabalho, pandemia), de maneira a desencadear uma crise de caráter breve ou longitudinal. 

Um serviço psicossocial criado a partir de um desastre tende ao desaparecimento ou à transformação, visto que sua existência é forçada por uma condição de excepcionalidade e não por uma demanda contínua. Assim, em 2018, o Acolhe Saúde ampliou-se e transformou- se em Santa Maria Acolhe, cadastrado no Ministério da Saúde enquanto equipe AMENT (Equipe Multiprofissional de Atenção Especializada em Saúde Mental, portaria nº 3588/2017). 

Com essa formalização, o serviço assumiu sua vocação de cuidado à crise e se constitui como estratégia importante na atenção integral à população que, até aquele momento, não encontrava um local de referência às suas necessidades dentro das legislações vigentes. A constatação de um vácuo das políticas públicas para a população com sofrimento moderado, e sua exacerbação convertida como urgência, se impõe já faz algum tempo, a despeito da existência de importantes estratégias, como o apoio matricial à Atenção Básica, ações de prevenção e promoção de saúde mental e qualificação de equipes especializadas. 

Dessa forma, o Acolhe passa a incluir os casos de crise subjetiva relacionados ao comportamento suicida (ideação suicida, plano suicida, tentativas de suicídio), luto, situações de natureza traumática associadas às ocorrências de violência urbana e Covid-19. Atualmente, o número de pessoas vinculadas ao incêndio é bastante reduzido comparado aos primeiros anos, mas a equipe segue como referência de cuidado individual e nas manifestações conduzidas pela Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM). 

Do desastre nasce e se modula na cidade (acompanhando as transformações dos modos de viver e cuidar no laço social contemporâneo) mais um serviço dentro da Rede de Atenção Psicossocial, uma clínica ampliada que nos convoca à problematização sensível sobre a dor, às transformações necessárias, à disposição e à luta. Como Foucault nos traz: “há momentos na vida em que a questão de saber se é possível pensar de forma diferente da que se pensa e perceber de forma diferente da que se vê é indispensável para continuar a ver ou a refletir”. 

“Um serviço psicossocial criado a partir de um desastre tende ao desaparecimento ou à transformação, visto que sua existência é forçada por uma condição de excepcionalidade e não por uma demanda contínua”

Volnei Antonio Dassoler | CRP 07/04141
Psicólogo e psicanalista

Sabrina Ludwig | CRP 07/27821
Psicóloga

Riziere Buzzatte | CRESS/RS 6208
Assistente Social

Gilson Mafacioli da Silva | CRM-RS 24685
Psiquiatra