REFLEXÕES

Da “Boca do Monte” à cidade da Kiss

“Boca do Monte” é o apelido carinhoso dado à cidade de Santa Maria, localizada na região central do Rio Grande do Sul. A alcunha tem origens históricas e geográficas que remontam ao período colonial brasileiro, quando a área era atravessada por tropeiros que se reuniam em uma garganta estreita entre dois morros, que lembrava a forma de uma boca aberta. Com o tempo, a área em torno da garganta se transformou em uma cidade e o apelido permaneceu como uma lembrança do passado e uma forma de identidade e pertencimento à cidade.

A partir de janeiro de 2013, o incêndio da boate Kiss se tornou parte da história e da identidade da cidade, abalando e confrontando a relação de pertencimento entre a cidade e seus habitantes. Desde então, os assuntos relacionados ao incêndio endereçam-se quase que exclusivamente às pessoas envolvidas diretamente com o ocorrido. Desde familiares, sobreviventes e alguns profissionais da saúde que resistem frente às tentativas de silenciamento e apagamento, em que parte da população argumenta que é hora de “deixar isso para trás” e “seguir em frente” e, ainda, que a cidade precisa se concentrar em outras questões, como o desenvolvimento econômico.

Na investigação sobre as causas do incêndio surgiu uma série de falhas e irregularidades, como a falta de fiscalização e de segurança em locais públicos e a corrupção, revelando, ainda, a cultura de negligência e irresponsabilidade que precisava ser confrontada. Os prejuízos causados à saúde mental, em decorrência da tragédia, são incalculáveis. A extensão dos horrores vividos naquela noite contribui para a criação de um “tabu” em relação ao tema Kiss, dificultando tanto a elaboração do trauma por cada indivíduo afetado quanto a consolidação de uma narrativa compartilhada sobre a tragédia, o que torna o processo ainda mais solitário. Assim, confrontar-se com a história é, de certo modo, inserir-se nos acontecimentos e ter que lidar com a dimensão do indescritível.

A indefinição da Justiça, com a falta de respostas, oferece severos riscos à transmissão das memórias. Ela oculta a história à sociedade e incumbe a seus militantes o dever de carregá-las consigo e de tentar, a seu modo, compartilhar suas vivências na busca por garantias de que tragédias evitáveis não voltem a ocorrer. A impunidade reforça a descrença e desesperança no Sistema de Justiça e na capacidade das instituições de responsabilizar as culpadas (os), contribuindo para uma cultura de negação e esquecimento, na qual as pessoas tentam suprimir o trauma e seguir em frente sem lidar adequadamente com as consequências da tragédia.

A luta incessante por justiça, protagonizada por familiares durante os últimos 10 anos, segue em busca das devidas responsabilizações, confrontando os agentes mantenedores da impunidade e buscando a reconciliação da cidade com sua própria história. A segurança e o bem-estar dos cidadãos devem ser sempre uma prioridade. E a tragédia da boate Kiss é uma lembrança dolorosa de que a negligência em relação a esses aspectos pode ter consequências devastadoras.

É importante lembrar que falar sobre a tragédia pode ser uma forma de ajudar na elaboração do luto e do trauma das pessoas afetadas pelo incêndio na boate Kiss. Ao compartilhar suas histórias, sentimentos e emoções, os afetados podem se sentir compreendidos e acolhidos por outras pessoas que passaram por situações semelhantes. Falar colabora para a construção de uma narrativa coletiva que permite que a memória daqueles que perderam suas vidas seja preservada. E que medidas preventivas sejam tomadas para evitar que uma tragédia semelhante aconteça novamente.

Com esse propósito, as diferentes ações em prol da memória e da justiça buscam oferecer ouvidos às diferentes maneiras com que a cidade tem se manifestado sobre a Kiss, convocando a “Boca do Monte” a reconhecer esse episódio para, então, poder falar sobre sua própria história.

Gabriel Rovadoschi Barros | CRP 07/29636
Psicólogo, sobrevivente do incêndio na boate Kiss, presidente da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria - AVTSM e integrante do GT Kiss do CRPRS.