PERSPECTIVA

Onde você estava no dia 27 de janeiro de 2013? 

De que forma todos nós estamos ligados à história do incêndio da boate Kiss? Para refletir sobre essa questão, entrevistamos a psicóloga Bruna da Silva Osório Pizarro (CRP 07/20208), mestra em Psicologia com ênfase em Psicologia da Saúde, exconselheira do Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul e integrante do GT Kiss do CRPRS e do Coletivo de Psicanálise de Santa Maria.

Bruna Pizarro - Nesses 10 anos, percebo que foram vários momentos diferentes de atuação e de pertencimento. Se partimos da pergunta: “Onde você estava no dia 27 de janeiro de 2013?”, eu estava me sentindo convocada como psicóloga a estar atuando junto a uma tragédia jamais imaginada, que acontecia na cidade para a qual eu vim para estudar, iniciar e fixar meu trabalho e minha vida.

Em 2013, minha atuação estava fortemente vinculada ao CRP e foi deste lugar que atuei e me vi: na gestão, compondo a equipe de organização das atividades do gerenciamento da crise. Participei da Conferência de Proteção e Defesa Civil estadual e nacional, representando a categoria. Dei suporte técnico em outra situação de emergência e desastre fora da cidade e, depois de intensos três anos, me afastei. Precisei me afastar para viver a minha maternidade. E, a cada 27 de janeiro, vinha um outro sentimento, que ainda não conseguia nomear. Eram os outros lugares aos quais eu pertencia e nem mesmo me dava conta. E que, de alguma forma, eu neguei.

Chegando próximo dos 10 anos da Kiss, com um júri anulado, a convocação chegou a mim, novamente. Após a escuta do Gabriel no Coletivo de Psicanálise que integro, entendi que não era só a Bruna psicóloga que viveu isso tudo.

Precisei me reposicionar e me perguntar novamente: “Onde eu estava no dia 27 de janeiro de 2013?”. Agora, de outra forma, eu vi que era também uma mulher jovem, que estava numa festa, e que poderia ter ido à Kiss naquela noite. Que soube do incêndio enquanto ele acontecia, que não quis “ir lá ver”, que negou aquilo que estava acontecendo até chegar o domingo de sol escaldante, junto com a realidade, com a dor, o silêncio e os gritos que perpassavam a cidade. Que perdeu pessoas e que também sofre os efeitos de uma cidade que viveu isso.

Fui convocada, agora, a refletir sobre um trauma que também é meu, independente da minha profissão e lugar de cuidado. Hoje compreendo que meu lugar político, enquanto cidadã, é resgatar a memória, auxiliar na narrativa dessa história. Não dando respostas, mas fazendo perguntas que possam reposicionar as pessoas em meio aos efeitos desse incêndio.

 

27 de janeiro de 2013?

Eu quero que minha filha, que nasceu em Santa Maria, compreenda o quanto a impunidade não pode ser aceita, o quanto esquecer não é o caminho saudável, pois aquilo que não elaboramos, retorna de alguma maneira. Além disso, quero que ela, todas e todos, estejam seguras/seguros nas nossas boates, que as diferentes esferas se responsabilizem pelo ocorrido, que possamos falar, gritar, expressar nossas dores juntas e juntos para construir esse futuro. Muitas jovens, como eu, poderiam ter seguido suas vidas sem essa brusca interrupção. Não foi um acidente. E o meu pertencer é uma mistura de tudo isso, de todas que eu fui e que sou.

 

Bruna Pizarro - Muito se escuta que temos que “deixar as pessoas descansarem”. Escutamos muito a pergunta “Até quando?”. Compreendo que é porque temos uma cultura que cala sobre a dor. E que faz o movimento de silenciar sobre a impunidade.

As dores e os sofrimentos gerados pelo incêndio na boate Kiss, em Santa Maria, explicitam a impunidade e a impunidade fere a humanidade de todas e todos, pois fragiliza a garantia de segurança e justiça que é prevista à sociedade. A impunidade também cria obstáculos na transmissão da memória e potencializa a dimensão traumática de um desastre. Essa potencialização torna o sofrimento contínuo e incessante, debilitando a saúde mental das pessoas afetadas. Então, ao lembrarmos deste incêndio, honrarmos as vítimas, abrimos espaço para a elaboração desse trauma, lutamos por justiça e pela responsabilidade de todas as esferas envolvidas.

Há alguns meses temos trabalhado no Eixo Kiss, do Coletivo de Psicanálise de Santa Maria, a pergunta “Onde você estava no dia 27 de janeiro de 2013?”. Entendemos que tem sido por meio dela que as pessoas, ao longo desses 10 anos, começam a falar sobre o incêndio na boate Kiss. Ela é um ponto de partida comum para quem vive ou já viveu em Santa Maria ou não. Essa pergunta pertence a nós e a esse acontecimento e carrega a potência de ligar cada um de nós a ele.

“Onde você está/estava?” nos posiciona em dois tempos simultaneamente. Podemos ler “onde você estava”, remetendo ao passado e, no ato de enunciar a pergunta no presente, podemos ler “onde você está?” frente a este acontecimento. É uma pergunta que nos convoca a olhar para o lugar geográfico em que estávamos naquela terrível madrugada, mas sobretudo, do nosso lugar subjetivo e de como nos afetamos por tudo que aconteceu e ainda está acontecendo. Ela nos convoca a nos olharmos de dentro e não de fora da tragédia. Portanto, esta pergunta leva a pessoa que inicialmente não se sente “parte” da tragédia a ressignificar o seu lugar no âmbito coletivo. Se reconhece aqui um lugar comum, mesmo com todas as diferenças de experiências e formas de lidar com a dor e sofrimento frente a um mesmo acontecimento.

Em setembro do ano passado, o Eixo Kiss endereçou à comunidade um formulário para quem quiser responder a essa pergunta. Os retornos que temos obtido nos mostram como um evento traumático, esse acontecimento que rompe radicalmente com o arranjo dos modos habituais de vida, pede por um trabalho de compreensão e reconstrução – singular e coletivo – dos nossos mundos. Essa pergunta mostra a força da linguagem, que mesmo em situações extremas resiste, quando escutada e tomada na sua importância.

Essa pergunta se torna ainda mais importante de ser lembrada diante da falta de responsabilização no âmbito da lei. A esperança depositada na cena judiciária converteu-se em descrédito. A impunidade fragiliza as garantias de segurança e Justiça previstas na sociedade. As lutas assumidas por sobreviventes, familiares, amigos e profissionais envolvidos, com o tempo, passaram a ser questionadas e rechaçadas por aqueles que não querem ver as cinzas que o incêndio ainda deixa. Frases ilusórias dirigidas aos grupos que lutam nesses 10 anos, de que superem totalmente o que aconteceu, é um exemplo dessas contestações simplistas que denunciam a dimensão traumática de uma impunidade na esfera coletiva.

Não podemos confundir superação com elaboração de perdas, nem com silenciamento. O que não podemos falar, não podemos compreender. Precisamos colocar a pergunta a quem rechaça os movimentos de luta de maneira a incluirmos essas pessoas no processo, de maneira a convocá-las a se sentirem pertencentes a ele. O trabalho de luto e elaboração somente poderá ser processado singularmente se houver reconhecimento social.

Bruna Pizarro - Muitos foram e são os efeitos dessa tragédia para Santa Maria. Uma cidade que ficou com essa marca, conhecida pelo mundo inteiro. É um acontecimento que não passa sem efeitos. Foram vários momentos diferentes, nestes 10 anos. De atuação, acolhimento, gestão de políticas públicas, homenagens, cobrança da responsabilização do incêndio, júri anulado, dentre outros.

O “tamanho da tragédia” pontua que a luta contra o esquecimento é diária e é uma tarefa coletiva! Neste sentido, o Coletivo entra também na segurança para o futuro, em sabermos que nossos filhos e filhas podem sair, se divertir, e que voltarão com segurança às suas casas. Só assim poderemos garantir uma sociedade mais segura e justa para todos.

O Coletivo de Psicanálise cria o Eixo Kiss, com o objetivo de fazer memória, abrir espaço para os testemunhos e trabalhar na conscientização da população sobre essa responsabilidade coletiva.

Eixo Kiss

O Eixo Kiss continua acolhendo testemunhos pelo e-mail eixokiss@gmail.com e pelo formulário https://bit.ly/ondevoceestava.

A partir de outubro de 2022, o Eixo Kiss organizou e promoveu, em parceria com a Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), além de parceiros como a TV Ovo, intervenções na fachada da boate Kiss. É uma forma de chamar a atenção da sociedade para esta luta, uma tentativa de fazer furo neste “muro” que separa os que viveram a tragédia de forma direta e os afetados de diferentes formas.

A primeira intervenção se deu a partir da pergunta “Onde você estava no dia 27 de janeiro de 2013?”, que representa um elo, o enlace que coletiviza essa memória. A proposta foi de sensibilização e implicação da sociedade frente a esse acontecimento, que foi coletivo.

Na segunda intervenção do Coletivo, o convite foi: “Você compartilha sua palavra?”. Em um fio estendido na fachada da boate Kiss, quem se sentisse convocada/o poderia compartilhar sua palavra compondo um varal de registros e solidariedade. Emprestar a palavra para o que é impossível de ser dito frente ao real da morte.

Em dezembro de 2022, a iniciativa “242 histórias em estrelas” propôs a colagem de 242 estrelas com mensagens de crianças, pensando o compromisso com a transmissão transgeracional do trauma. Atendendo ao pedido da AVTSM e do Eixo Kiss, a Prefeitura Municipal de SM incluiu o quarteirão da Kiss na iluminação natalina com estrelas.

Em janeiro de 2023, na programação do evento “Boate Kiss 10 anos, resgatar a memória é construir o futuro”, foram feitas colagens nas calçadas de mais de 500 frases e fotografias em preto e branco do fotógrafo Dartanhan Baldez Figueiredo, que acompanha os movimentos de luta nesses 10 anos, compondo um caminho da Praça Saldanha Marinho até o prédio da boate Kiss.

A intervenção foi inspirada pelo memorial às vítimas do Holocausto: “Pedras do Tropeço”. As frases devolvidas à sociedade foram: Calar é descansar? Calar uma dor torna ela pequena? Esquecer é descansar? Você sabia que são mais de 600 sobreviventes? Como Santa Maria elabora o trauma da boate Kiss? Temos responsabilidade coletiva frente a essa dor? Como elaborar uma perda sem lembrar? Você se sente pertencente à tragédia da Kiss? Como estamos transmitindo este fato sem falar nele? As fotos se tratavam de imagens de mãos dadas e abraços que o fotógrafo registrou nos 10 anos de movimentos de luta.