DICAS CULTURAIS

Nos desfiladeiros da historiografia

O livro organizado por Márcio Seligmann-Silva “História, Memória, Literatura: o Testemunho na Era das Catástrofes”, publicado em 2003 pela editora da Unicamp, reúne ensaios de autores de diferentes campos teóricos dedicados ao estudo do testemunho e da memória a partir dos desafiadores interrogantes da literatura do século XX. Sem dúvidas, a questão sobre a qual se debruçam os autores indica as urgências do nosso tempo, demonstrando a função fundamental exercida pela literatura e pelas expressões artísticas em geral de denunciar o insustentável no laço social, o que é traduzido pela caneta dos autores dos ensaios, quase em uníssono, como um problema de ordem ética.

A fragilidade da reconstrução da História é apresentada como um pontapé inicial, abertura para o texto e primeiro convite ao leitor que chega às produções que se reúnem nesta obra. Nos desfiladeiros da historiografia, os testemunhos indicam a inexistência de um discurso que consiga, por sua estrutura, esgotar a dor, e que seja capaz de revestir e recobrir a experiência das catástrofes vividas desde o século passado.

Os métodos da historiografia passam então a ser questionados: se assume a historiografia como um mé- Dicas culturais todo de investigação que acessa, coleta e integra informações e dados oficiais para então compor uma malha que seja qualificada de história. Então, qual espaço é reservado para o testemunho?

Assume-se, portanto, que “a historiografia trabalha em um campo tão infinito quanto o da memória (pág. 17)”, de modo que não exista correspondência entre discurso e “fato” histórico. Nessa incontornável tensão entre testemunho e fato histórico, desvela-se que um extrapola o outro e vice-versa, já que no testemunho o fato se revela trans-histórico. “Mas sem o testemunho o fato não pode ser reunido, a menos que se negligencie a sua natureza lacunar” - para retomar Didi-Huberman (2012).

Nesta obra, os autores enfrentam um desafio de expor análises em torno de um tema que ainda encontra- se pouco abordado no contexto brasileiro. E abrem questões que merecem revisões e ampliações acerca destes estudos importantíssimos, que podem contribuir com o enfrentamento de questões que tocam os direitos humanos, violências, silenciamentos e apagamentos históricos. Dessa forma, esta obra mostra-se urgente e necessária para discutir questões que atualizam-se no nosso contemporâneo. 

Diego Aram Meghdessian Bedrosian | CRP 07/35263
Psicólogo, Mestrando em Psicanálise: Clínica e Cultura (UFRGS).

 

Kiss: a história que não pode ser esquecida para que nunca mais se repita

 

Onde você estava em 27 de janeiro de 2013? Essa pergunta, que tem ecoado em cada pessoa que se dispôs a refletir sobre o incêndio ocorrido na cidade de Santa Maria, no qual 242 jovens morreram, dá a dimensão do efeito da tragédia na vida de cada pessoa, mas principalmente da sociedade. Em 2018 foi publicada uma extensa investigação, característica dos textos da premiada jornalista Daniela Arbex. Dez anos depois do incêndio, temos as cenas retratadas em duas séries. O lançamento destas, pela Netflix e Globoplay, geraram debate e opiniões diversas.

“Todo dia a mesma noite, a história não contada da boate Kiss”, é o livro de Daniela Arbex, que faz da obra uma homenagem às vítimas. Ao nomear as vítimas, Daniela subjetiva o fato, pois os números passam a ter história, família, sonhos interrompidos. Ao descrever esses fatos, a partir das narrativas de quem os viveu,  Daniela conta o drama de quem fez o que não estava preparado para fazer, trabalhando no socorro e nas consequências do incêndio. Ler cada página, refletindo sobre os difíceis lugares que foram sendo assumidos por todas as equipes que se envolveram no atendimento do incêndio, atendendo feridos e entregando os corpos às famílias, ajuda a entender o chamado de que esse episódio não pode se repetir, nunca mais. Vale a leitura, experimentando a empatia, para que a história possa seguir sendo contada.

 

Desse livro, surge a série da Netflix “Todo dia a mesma noite”, que atinge recordes de audiência. A série de cinco episódios apresenta a descrição dos fatos, com cenas marcantes, o que incomodou algumas pessoas. Ao apresentar as histórias familiares, as vidas dos jovens que saem de suas casas para uma noite de diversão, comove quem assiste. São histórias de famílias comuns, com sonhos e afetos interrompidos. A tentativa de invalidar o apresentado, afirmando sensacionalismo, corrobora com a ideia de que, se não contarmos, a história não aconteceu. Sabe-se que a verdade pode ser dura, causar dor, mas segue precisando ser dita e contada para que tragédias como a da Kiss não se repitam.

Na mesma perspectiva, o jornalista Marcelo Canellas dirige e apresenta o documentário “Boate Kiss - a tragédia de Santa Maria”, que traz cenas reais, o que mais uma vez causa polêmica. O jornalista humaniza a narrativa, se colocando na história, como morador e estudante de Santa Maria. Entrevista personagens da vida real, familiares e sobreviventes que contam os impactos do incêndio nas suas vidas. Em cinco episódios são apresentados os fatos e analisados os efeitos da tragédia, que segue impune. Impunidade, aliás, que tem efeitos psíquicos, individuais e coletivos. Pode-se dizer que a Psicologia tem como responsabilidade compreender os efeitos da impunidade nas pessoas. Contar as histórias, seus desdobramentos, contribui para o enfrentamento da impunidade, que causa dor e sofrimento.

Eliana Sardi Bortolon | CRP 07/10559
Psicóloga, conselheira do CRPRS e integrante do GT Kiss do CRPRS