OBSERVATÓRIO DE DIREITOS HUMANOS

Injustiça e impunidade no caso Kiss

242 pessoas morreram e até hoje ninguém foi responsabilizado. O caso do massacre da boate Kiss chocou o Brasil e o mundo, que acompanharam perplexos enquanto centenas de corpos de jovens eram retirados da boate e suas mães discavam os números dos seus filhos, que jamais voltariam a atender.

Todos nós lembramos onde estávamos naquele domingo, 27 de janeiro de 2013. Dezenas de sobreviventes lutaram pela vida nas unidades de queimados dos hospitais, por semanas e meses. No total, o número foi estarrecedor: 242 vítimas fatais e 636 sobreviventes.

A luta por justiça, encabeçada por mães e pais que se tornaram ativistas e defensoras e defensores de direitos humanos, estava apenas começando. Em 2023, 10 anos se passaram e eles ainda clamam por justiça frente à absoluta impunidade que impera no caso Kiss.

Apesar das proporções gigantescas de direitos violados e do dano causado, ninguém foi punido. O Sistema Judicial Brasileiro parece não estar preparado e não desejar punir pessoas envolvidas em grandes tragédias, já que a impunidade é uma realidade em casos como Mariana, Brumadinho, CT do Flamengo, acidente da TAM e outros.

Por um lado, as autoridades públicas acabam sendo eximidas de responsabilidade pelas instituições que deveriam processá-las; por outro, os particulares são protegidos por sua condição de gerentes ou empresários de empresas privadas, escondidos que ficam sob o manto de que “não desejaram” o evento fatídico e de que estavam apenas administrando o empreendimento.

No caso Kiss não foi diferente. Para a revolta dos familiares das vítimas, o Ministério Público Estadual (MPRS) arquivou inquéritos e impediu a investigação judicial das autoridades da prefeitura de Santa Maria, isentando de responsabilidade o prefeito, secretários e fiscais. Ao fazer isso, o MPRS violou o direito à justiça das vítimas e esgotou as ações e os recursos que o Sistema Judicial Brasileiro oferecia para a responsabilização dos agentes públicos, impondo a impunidade pública no caso.

Por essa razão, apresentamos uma denúncia internacional perante à Comissão Interamericana de Direitos Humanos sobre o caso Kiss, que está em tramitação.

No âmbito dos particulares envolvidos, o Ministério Público denunciou criminalmente apenas os proprietários Elissandro Spohr e Mauro Hoffmann, o vocalista Marcelo de Jesus dos Santos e o produtor Luciano Bonilha Leão, da banda Gurizada Fandangueira. Passaram-se 9 anos depois do incêndio para que o julgamento desses quatro réus ocorresse. Em 10 de dezembro de 2021, os jurados os condenaram. Poucos meses depois, o júri foi anulado pelo Tribunal de Justiça do RS. Pendem recursos no STJ e STF, pedindo a reversão daquela anulação.

As famílias e as vítimas sempre buscaram a responsabilização de todos os envolvidos. Mas, com o passar dos anos, foi se criando na opinião pública uma ideia de que as autoridades públicas seriam as “principais responsáveis” pelo crime e, como consequência disso, os particulares envolvidos não teriam responsabilidade.

Ora, a participação pública no caso não pode eximir de responsabilidade as pessoas privadas que agiram diretamente para que as mortes ocorressem. Foram os proprietários da Kiss que eliminaram as portas de saída de emergência, que retiraram os extintores de incêndio – porque não eram esteticamente agradáveis – , que não instalaram luzes de emergência. A única iluminação branca que havia era a que guiou os jovens levando-os para os banheiros, onde dezenas de pessoas morreram umas sobre as outras. Foram os donos da Kiss que determinaram a entrada de mais de 1.200 pessoas num local onde cabiam 600.

A impunidade dos proprietários e responsáveis privados pelo massacre da Kiss é tão acintosa quanto a impunidade dos agentes públicos. Ambas constituem grave violação de direitos humanos e pavimentam o caminho para a repetição dos fatos: a responsabilização é um alerta a outros empresários de que precisam agir ativamente para a preservação da vida humana e que, quando não o fizerem, serão punidos. Ao contrário, a impunidade informa a todas e todos que as vidas das pessoas sob sua responsabilidade não importam.

A impunidade termina por violar os direitos à verdade, memória e justiça. Na medida em que não há uma versão oficial de responsabilização, não se constitui a verdade sobre o ocorrido, e os familiares precisam seguir repetindo que seus filhos não foram os responsáveis por suas próprias mortes, nem os sobreviventes por aquilo que viveram e pelos traumas e consequências que levarão para o resto da vida consigo.

Para a Corte Interamericana de Direitos Humanos, o direito à verdade tem uma dupla dimensão: individual e coletiva. Não apenas o direito das vítimas é violado, mas também o direito de toda a sociedade brasileira de saber a verdade dos fatos, de saber quem foram os responsáveis e em que medida contribuíram para o ocorrido.

É preciso sanar e reparar essas graves violações, e a justiça é o passo imprescindível para isso.

Tâmara Biolo Soares
Representante da Associação das Vítimas da Tragédia de Santa Maria (AVTSM) perante à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. É Mestre em Direito pela Universidade de Harvard, Mestre em Políticas Públicas pela UFRGS, foi advogada na Corte Interamericana de Direitos Humanos e atualmente é coordenadora de Projetos de Prevenção à Violência do Instituto Cidade Segura