EDITORIAL

O incêndio na boate Kiss, em 27/01/2013, atropelou a vida de muita gente, sobressaltou e marcou, para sempre, não somente a vida das pessoas de Santa Maria. É um incêndio que joga luz sobre as liturgias e os encargos burocráticos do Estado. A cidade, em grande parte, nega o que aconteceu e se nega a olhar para isso. O individualismo joga névoa sobre o olhar de quem não sentiu no próprio peito, na própria pele, na própria vida, no próprio afeto, a estupidez e a profundidade dessa tragédia. Quem não sentiu e não viveu a situação não tem a dimensão da reverberação disso nas vidas afetadas.

Neste ano, o CRPRS está participando das atividades que marcam os 10 anos desse desastre e essa edição da EntreLinhas integra esse projeto. Envolvido desde o primeiro momento, o CRPRS esteve, em 2013, na organização e suporte para o acolhimento de familiares, sobreviventes e trabalhadoras/trabalhadores que atuaram no atendimento prático à situação. É preciso acompanhar, promover e ampliar as conversações e a qualificação da atuação da Psicologia frente aos cenários de emergências e desastres.

Nossa profissão e nossa categoria são convocadas a atuar na linha de frente, diante das situações de calamidades públicas e de desastres, e nossos Conselhos (Federal e Regionais) têm o papel de orientar e promover estratégias de atuação que garantam acolhimento para pessoas afetadas por emergências e desastres, bem como orientar a categoria com protocolos de atuação nesses casos.

O que se quer com essa mobilização é a afetação de todas as gentes! Não é de individualismo que familiares e sobreviventes estão falando; é de solidariedade, de responsabilidade, de transformação da perda em ganho, para que isso não se repita. É de responsabilização, para que possamos olhar e superar o sentimento de impunidade que viceja no peito, de irresponsabilidade. Isso passa pelo fazer da/o arquiteta/o, da/o engenheira/o, da/o empresária/o, do Corpo de Bombeiros, da Vigilância, da/o trabalhadora/trabalhador que atua nesses espaços, do Estado, do Judiciário. Não se trata de não superarem ou de não lidarem com as perdas e os danos vindos dessa tragédia que matou 242 pessoas e feriu mais de 600. Trata-se de evitar que aconteçam outras situações desse tipo, evitar que se mantenham funcionando espaços que não garantam a segurança de quem frequenta, evitar que um espaço de diversão seja transformado numa câmara de gás que assassina pessoas. Trata-se de dar outra dimensão para o que chamam de segurança nesses espaços, para que segurança sirva para proteger as pessoas e não para trancar as portas, para proteger o capital e a vilania de quem deseja apenas o dinheiro. Trata-se de ampliar a dimensão do fazer do Judiciário, para além do cumprimento de liturgias ou formalidades, responsabilizando quem usurpa vidas e existências e, a partir disso, garantindo a modificação efetiva desse cenário. Trata-se de produzir um sentido vital a tantas perdas, dores e tristezas. É preciso honrar a vida de tantos jovens que se foram sem chance de, por si, mantê-la!

A Psicologia trabalha com a vida e com os modos e processos de subjetivação, e, nessa seara, precisamos pensar e olhar, também, para a impunidade que permeia uma sociedade perversa e individualista; para a promoção da cultura do cuidado e da prevenção; para que desastres e tragédias que acontecem por conta da negligência e do descuido não se repitam.

Maria Luiza Diello | CRP 07/08488
Conselheira Tesoureira CRPRS

 

Imagens desta edição

Presente há 10 anos nas ações relacionadas ao incêndio da boate Kiss, o fotógrafo Dartanhan Baldez Figueiredo cedeu gentilmente as fotos que ilustram esta edição da revista EntreLinhas. 

Dartanhan é professor de Física aposentado da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Sua relação com a Fotografia começou em 1974. Quando era aluno de Licenciatura em Física fez dois semestres de Disciplinas de Fotografia, no Centro de Artes da UFSM. Os primeiros trabalhos científicos publicados foram materiais didáticos para o ensino de ótica usando técnicas de Fotografia. Depois de aposentado, passou a usar a Fotografia como fotógrafo amador para dar visibilidade à cultura e aos movimentos sociais em Santa Maria. Hoje, um dos movimentos sociais que acompanha é a Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVSTM). “Nas primeiras fotos publicadas sobre a Kiss caracterizei como massacre”, revela.

Seu trabalho pode ser acompanhado em: https://www.instagram.com/baldezfigueiredo.