PERSPECTIVA
O compromisso da Psicologia com os povos indígenas
“Nós somos compartilhadores, nós somos a coletividade.” A fala da jovem indígena kaingang Milena Jynhpó, da Terra Indígena Guarita, resumiu o evento “Marco temporal não: nunca mais um Brasil e uma Psicologia sem nós”, realizado no dia 15 de julho de 2023 pelo Conselho Regional de Psicologia do RS, em uma organização das Comissões de Relações Étnico-Raciais, de Direitos Humanos e de Psicologia, Sociedade e Políticas Públicas. O dia histórico para a Psicologia reuniu lideranças indígenas do estado em um ato político em defesa da vida, refletindo sobre a avalanche de retirada de direitos que o marco temporal representa para as infâncias e para a sociedade de uma forma geral.
“Com este evento, queremos selar o compromisso com a vida, não só com os povos indígenas. O futuro é ancestral. Demarcação já. Marco temporal não.” Assim a conselheira Priscila Góre Emilio, indígena kaingang, abriu o evento agradecendo a colaboração da conselheira Camila Dutra dos Santos, presidenta da Comissão de Relações Étnico-Raciais; da conselheira Samantha Medeiros Ferreira, presidenta da Comissão de Direitos Humanos; e do conselheiro Luís Carlos Bolzan, presidente da Comissão de Psicologia, Sociedade e Políticas Públicas, responsáveis pela proposição do evento.
A conselheira presidenta do CRPRS, Míriam Cristiane Alves, ao saudar a ancestralidade indígena, chamou todas as lideranças indígenas a subirem ao palco, representando os diferentes povos. “Reunimos vocês aqui porque queremos mostrar ‘no que virou este conselho’. Virou um espaço de construção, de processo democrático, em que é possível que vocês, povos indígenas, estejam aqui. Quando a branquitude construiu as políticas de cotas do Sistema Conselhos de Psicologia, imaginou que permaneceríamos apenas como cotas. Queremos mostrar que viemos para marcar a nossa existência, dizer que a sociedade precisa se transformar considerando a nossa pluriversidade, a existência de cada um e cada uma que está aqui representando seu povo.
Essa pergunta disruptiva ‘No que virou este Conselho?’ rompe com o status quo, com a invisibilidade e com o silenciamento da nossa existência. Este Conselho virou um espaço vivo de construção democrática, um espaço de produção de diferentes vidas e existências”, afirmou a conselheira presidenta do CRPRS.
Na sequência, representantes da comitiva da Terra Indígena de Iraí e da Terra Indígena Guarita, que estavam no auditório do CRPRS, fizeram uma apresentação cultural de boas-vindas. Logo após, organizou-se uma Gira Poética, com a participação da psicóloga Maíne Alves Prates, da fisioterapeuta e mestranda em Psicologia Social, Úrsula Ingrid de Souza Faria, e do conselheiro vice-presidente do CRPRS, Ademiel de Santa’Anna Junior.
O que é o marco temporal?
Na primeira mesa do evento “O que é o marco temporal?”, mediada por Priscila Góre Emilio, psicóloga indígena kaingang e conselheira do CRPRS, e por Daniela dos Santos Nunes, psicóloga indígena kaingang, foram apresentadas e discutidas as motivações da proposta, as consequências de sua aprovação e o seu impacto na saúde mental, considerando o bem-viver indígena.
“O marco temporal vem para nos destruir, para nos calar. É uma afronta, pois antes da colonização já estávamos aqui. Para onde vamos?”, afirmou Regina Goj Téj Emílio, da Terra Indígena Guarita.
Para o ouvidor-geral da Defensoria Pública do RS, Rodrigo de Medeiros Silva, é preciso estar ao lado dos povos originários contra o marco temporal. “Esse é mais um capítulo dessa marcha da colonialidade que não tem fundamento histórico ou referencial legal. Também é preciso estar atento a propostas de conciliação ou flexibilização que, na prática, irão inviabilizar a demarcação de terras indígenas.”
“É um projeto de destruição da Constituição Federal, fruto de algo construído coletivamente. É preciso a união de todos que defendem a justiça social. O marco temporal destrói a gênese de ser nômade, é inconstitucional e precisamos seguir fazendo pressão para desconstruir essa noção”, declarou Ottmar Teske, da Assessoria de Formação do Gabinete do Senador Paulo Paim.
“Os nossos representantes políticos precisam entender nossa biodiversidade, nossa cultura, nossa vida. Temos que, a partir disso, construir políticas públicas em conjunto, que respeitem isso e defendam o coletivo e o meio ambiente”, citou Moisés da Silva, vice-cacique da Terra Indígena Kaingang Fag Ninh e Oré Kupri, de Porto Alegre.
Edinaldo Rodrigues Xukuru, conselheiro do CRP de Pernambuco, ressaltou o pioneirismo do CRPRS e do CRP SP na aproximação com as temáticas indígenas. “Reafirmamos nosso compromisso de luta, de não deixar passar o projeto do marco temporal, que vem para tomar terras já demarcadas, permitir invasão e enriquecer quem já é rico. São questões que impactam o bem-viver indígena.”
O coordenador regional da Arpin Sul - Articulação dos povos indígenas da Região Sul, cacique Jonathan Toto Jacinto, ressaltou a força indígena em sua fala. “Não queremos que essa discussão avance e chegue a um confronto direto. Se tiver que derramar nosso sangue pelas nossas terras, nós vamos derramar. Precisamos defender nossos direitos. Sem demarcação não há democracia. Jamais um Brasil sem nós.”
E as falas da primeira mesa encerraram com Ângela Charrua, presidenta do Conselho Local de Saúde Indígena Polo Base Porto Alegre: “Se estamos aqui é porque lutamos. Chega do papel abafar nossa voz. A minha voz ninguém vai calar”.
A segunda parte do evento teve início com a participação de Lílian Rocha, na Gira Poética. Logo após, na mesa “Psicologia e povos indígenas: o que a Psicologia tem a aprender com os povos indígenas?”, foi realizado um debate sobre a relação entre os povos indígenas e a Psicologia. A mesa foi mediada pela psicóloga indígena guarani Josiele Luana Morais e pela psicóloga Gabriela Zuchetto.
Dayane Teixeira Almeida Boni, psicóloga da Articulação Brasileira de Psicólogos Indígenas – ABIPSI, participou do evento por meio de um vídeo, ressaltando o retrocesso que o marco temporal representa para a história e para o bem-viver indígena.
O cacique Joel Ribeiro de Freitas, da Terra Indigena do Guarita, parabenizou a Psicologia por estar dando espaço e voz a seu povo. “A terra é um direito nosso, mas que segue sendo ameaçado. Precisamos fazer chegar nosso grito a deputados e senadores.”
Priscila Góre Emilio, indígena kaingang e conselheira do CRPRS, lembrou que antes de existir a Psicologia já existia o cuidado e que é responsabilidade social de cada pessoa conhecer mais sobre a história dos povos indígenas. “Nós resistimos para existir. Falar de bem-viver indígena é falar de território. Nossos corpos são prolongamento de nossas terras. É fundamental a Psicologia conhecer essa linha de cuidado e respeitar essa cultura. Foi um grande erro a Psicologia brasileira nascer descolada disso.”
Ronildo da Cruz Bomfim, indígena pataxó e conselheiro do CRP da Bahia, reforçou a importância de a Psicologia conhecer mais sobre os povos indígenas, valorizar a sabedoria intergeracional, respeitar a autonomia e a autodeterminação do indivíduo na tomada de decisões. Para Hudson Carajá, indígena e conselheiro do CRP de Minas Gerais, a sociedade engendrada na branquitude e no capitalismo, que controla corpos e subjetividades, precisa olhar a existência dos povos indígenas de forma diferente e a Psicologia deve entender sua implicação neste processo.
O evento contou também com a exibição de vídeo da psicóloga Rejane Paféj Kanhgág e com as presenças de Thiago Aiamari Kavopi, indígena e conselheiro do CRP do Mato Grosso, e Paulo Karaí Xondaro Oliveira, indígena e conselheiro do CRP do Paraná. E encerrou com mais uma rodada da Gira Poética, marcando o compromisso da Psicologia na luta contra o marco temporal e na defesa dos povos indígenas.
Saiba mais:
Assista ao vídeo do evento em: www.youtube.com/crprs.
Acesse as Referências Técnicas para atuação de psicólogas/os junto aos povos indígenas em: https://bit.ly/3NZqbF5.