OBSERVATÓRIO DE DIREITOS HUMANOS
Por que o crime está em interromper uma gravidez indesejada e não em forçar a gestar?
Ana Maria Bercht | CRp 07/27738
Psicóloga Clínica e Social, Doutoranda em Psicologia do Grupo de Pesquisa Preconceito, Vulnerabilidade e Processos Psicossociais da Pontifícia Universidade Católica do RS (PVPP/ PUCRS).
Não existe aborto legal no Brasil. A frase pode soar estranha, considerando que, desde a criminalização no Código Penal de 1940, há a exceção em casos de estupro. Enquanto psicóloga que pesquisa a área dos direitos reprodutivos, porém, preciso reconhecer não a mera legislação, e sim a realidade como materialmente se impõe em um país com desigualdades estruturantes.
Nosso país é o 4º no mundo e o 1º na América Latina em casamentos infantis. No Brasil, em média, uma criança se torna “mãe” a cada 20 minutos, conforme a Rede Feminista de Saúde do Paraná. As estatísticas revelam uma sociedade na qual o estupro constitui-se como prática masculina normativa, que por vezes se concretiza em outra violência: a gravidez infantil.
Já o escasso direito ao aborto legal é permeado por tantos obstáculos que se torna irrisório frente à realidade do estupro. Madeiro e Diniz (2015) indicam que “entre 2013 e 2015, das 5.075 mulheres e meninas que tentaram acessar o aborto legal, menos da metade conseguiu realizar o procedimento, sendo que 38% delas eram crianças ou adolescentes”. Ou seja, as meninas e mulheres não chegam aos serviços de saúde. Das que chegam, a maioria não consegue realizar o aborto.
Este cenário não foi construído ao acaso. Refletida nas punições legais e na falta de estruturação das políticas públicas está a ideologia masculina avançada, em especial, por setores conservadores e religiosos. Chamo de ideologia justamente para nomear o enquadre que se passa como neutro, mas que trata dos interesses das classes dominantes.
Guillaumin (2016) define como “sexagem” a apropriação não só do tempo e da força de trabalho das mulheres, mas dos nossos próprios corpos. Soma-se a isso a ausência de mulheres na política, culminando em um Estado composto, desde sua criação, por homens que legislam e decidem sobre nossos corpos e nossas vidas.
É essa estrutura de poder que cria o regime de verdade no qual o discurso do aborto como crime, e como ato capaz de originar uma punição sobrenatural, torna-se verdade. Já a definição da ONU (2016), de que negar acesso ao aborto em casos de estupro é tortura, é vista como ilegítima. Assim, as alas conservadoras formatam a pauta do aborto como discussão moral, fusionando Estado e religiões cristãs. O governo torna-se um propulsor da hegemonização destas crenças religiosas, que buscam proteger o patriarcado enquanto regime de poder.
Por meio de processos ideológicos e do campo da perversidade, ao mesmo tempo que estas alas posicionam-se no discurso público como contrárias à violência sexual, nas bancadas legislativas empurram projetos de lei como o 2893/2019, que propõe a criminalização total do aborto. No PL, afirma-se que um estuprador é mais inocente que uma mulher vítima que acessa o aborto, afinal ele não matou ninguém, e ela sim. Na mesma linha, aquela que foi ministra durante quatro anos afirmou à Folha de São Paulo, em 2018, que mulheres nasceram para ser mães e não deveriam se ausentar “do lar”.
É ela também que tentou impedir uma menina de 10 anos, do Espírito Santo, de acessar o direito ao aborto, bem como disse que crianças em Marajó eram estupradas por falta de calcinhas. Não é à toa que costumam ser estas as mulheres em instituições de poder. Não há também contradição quando dizem que defendem as crianças ao passo que se colocam contra a educação sexual nas escolas. Há projeto ideológico.