EDITORIAL

Ailton Krenak (2020), o mais novo membro da Academia Brasileira de Letras, é a força da natureza que nos convoca, vibrando a flor de peles sensivelmente arrepiadas, à intervenção nos pacíficos cenários criados pelo colonialismo. Krenak troveja na nebulosidade de nossos tempos: “Nós estamos em guerra. Eu não sei porque você está me olhando com essa cara tão simpática. Nós estamos em guerra. [...] A falsificação ideológica que sugere que nós temos paz, é pra gente continuar mantendo a coisa funcionando*”.
 
Nomeada a inspiração, somos agora convocadas/os, nesta guerra, a pensar nossas formações em Psicologia. Qual é a posição que as universidades têm assumido para que - na expressão mais objetiva desse cenário da guerra anticolonial - possamos operar processos de descolonização do pensamento? Na história da produção do conhecimento científico e da própria Psicologia, a colonização invadiu não somente geografias, mas impregnou pensamentos com uma lógica que inventa seres humanos desmembrados em categorias que, segmentadas pelas produções científicas e pelo conhecimento do norte global, tornam-se objetos esquadrinhados dentro de escalas em que qualquer variável rapidamente é rearranjada no próprio espelhamento branco. A equação é bem simples. Se a variável já é historicamente mensurada desde um espelhamento europeu/branco, não é difícil detectar para onde serão endereçadas as diferenças dos corpos se não para a própria psicopatologia.
 
Como escapar desses sequestros? Primeiramente, afirmando que este corpo sobre o qual nos debruçamos durante nossa formação, nunca foi neutro, segmentado e único, ao contrário, é múltiplo, localizado em diferentes territórios e atravessado por complexas questões econômicas, ecológicas, políticas e sociais. Já que para esses corpos foi inventada a raça e o gênero, precisamos escutar os significados de cada uma destas categorias, no cenário que compõe a formação em Psicologia. É inadiável que nossas formações combatam os cenários de falsificação ideológica que capitalizam essa “paz” na tentativa de manter cada pensamento no seu confortável compartimento universal.
 
Nesta edição da Entrelinhas, compartilhamos forças poéticas, inventivas e potências atentas à atualização da colonialidade que se apropria, expropria, esvazia e domina discursos, práticas e táticas antes instituintes. É nas Entrelinhas que a poesia como política, constrói discursos e práticas de seu tempo, une forças de combate e constrói seus aparatos de guerra, “desde dentro, desde fora”, com vivas artesanias micropolíticas, que vão transfigurar os processos de formação da Psicologia, pautada em novos paradigmas do pensamento. Não há mais tempo para a anestesia que a suposta paz sustenta com seus pactos datados de mais de 500 anos. Tomemos nossos aparatos de guerra para entrar em combate, em posições diversas, estrategicamente disputando narrativas.     
 
Afinal, se queremos uma Psicologia antirracista, antimachista, anticapacitista e anti-LGBTQIAPN+fóbica, pautada nos direitos humanos, é preciso que a luta anticolonialista contagie, desde de dentro, a formação em Psicologia e não somente, numa disciplina, num cantinho eletivo dos currículos acadêmicos.
 
Precisamos nos construir cotidianamente com unhas, dentes, testículos, úteros e cordas vocais de onça, afiadíssimas, para um combate efetivo ao racismo, ao patriarcado, ao sexismo, ao capacitismo e a todas as formas de opressão durante toda a formação, seja na disciplina de história da Psicologia ou na de avaliação psicológica, seja na de ética profissional ou nas práticas clínicas.
 
O grande desafio que se coloca na formação é o de desfazer as fronteiras estabelecidas e defendidas na própria formação, durante esse meio século de existência formal da Psicologia como ciência e profissão. Não há mais tempo para a sustentação de enclausuramentos teóricos inabaláveis. Ao contrário disso, é preciso lidar com os abalos sísmicos-teóricos, comuns em todo processo de formação, descompartimentalizando os saberes e as práticas em Psicologia, transfigurando radicalmente os paradigmas hegemônicos que ainda persistem, insistem.
 
E se as avaliações psicológicas forem instrumentos úteis de combate ao racismo? Ou à medicamentalização da vida? Ou à patologização da vida? E se os fazeres da Psicologia nas políticas públicas saírem do armário para assumirem que estão presentes nesses espaços, apostando no SUAS, no SUS, na Educação Básica, com as intencionalidades de uma clínica política? Ou ainda, se as práticas clínicas se reconhecerem, mesmo quando realizadas individualmente, como práticas coletivas? É para esta radicalidade na mudança de paradigmas que esta edição do Entrelinhas nos convoca.
 
A vocês, caras leitoras, leitores, esperamos com esta edição, afirmar que você não está sozinha ou sozinho nessa guerra pela descolonização do pensamento. Aqui apresentamos nossas máquinas de guerra. E as suas? Bora combinar de nos encontrar no fronte?
 
Diretoria CRPRS | Gestão Frente em Defesa da Psicologia RS
* Fonte: https://youtu.be/hM0lD91hBn0?si=OVrbORXNfqPfF9uN acesso em 10/04/2024