RELATO DE EXPERIÊNCIA

Sobre deslocamentos ao habitar uma escuta

Gabriela Oliveira Guerra | CRP 07/17457
Psicóloga na UFSM, doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia na UFSM
 
 
De que é composta uma escuta? Desde que lugares a habitamos, no encontro com o outro? Essas questões contornam minha experiência de escuta clínica enquanto psicóloga no campo das políticas públicas de saúde e assistência social e, mais recentemente, no âmbito da educação superior pública. Elas foram compondo a compreensão de sujeito que sustenta a construção de intervenções, ancoradas no referencial teórico, epistemológico e ético da psicanálise, bem como produziram deslocamentos, na busca de formação para a escuta frente a dimensão sociopolítica do sofrimento (Rosa, 2016) testemunhada nesses contextos.
 
No âmbito universitário, no campo da pesquisa e da extensão¹, esses movimentos foram se produzindo na intersecção com outros campos de saber, o que sustenta o horizonte ético e político do trabalho. Ainda, a partir da construção de dispositivos de intervenção, fomos constituindo tensionamentos quanto ao nosso lugar de escuta e nossa formação social e acadêmica, bem como questões quanto à composição curricular dos cursos de Psicologia no país. Dessa forma, trilhamos incursões junto aos estudos críticos da branquitude, às teorias de/descoloniais e ao pensamento interseccional.
 
Nesse sentido, uma das reflexões que compartilhamos parte dos estudos de Gebrim (2020): de que formas, perspectivas e lugares diferentes ocupados nos discursos é possível sustentar a escuta com o outro? Quais as condições de escuta e compartilhamento de vivências e de lugares distintos no laço social?
 
Em seu trabalho de pesquisa na clínica com migrantes, no qual apresenta sua experiência em diferentes fronts de intervenção, Gebrim (2020) aponta dois extremos na descoberta do outro: um encontro colonizador, que desconhece o outro em sua alteridade, produzindo o aniquilamento de sua humanidade e um encontro de compartilhamento, referente às descobertas que o eu faz também de si e de seu próprio íntimo, através da exterioridade ou da radicalidade dos traços encarnados na figura do estrangeiro. Situa a necessidade de deslocamento e desterritorialização como movimentos que produzem a possibilidade de sustentação de uma escuta, como o ato de deixar o próprio lugar, de deslizamento e descentramento subjetivos, destacando a necessária desalienação dos discursos hegemônicos na construção da escuta. Tal pontuação permite pensar em um necessário abandono do território que habitamos e na necessidade de nos deslocarmos em direção ao território do outro na construção de uma escuta da alteridade. Neste contexto, a autora interroga se o lugar de onde se fala pode servir de instrumento para a própria intervenção clínica e, partindo de sua branquitude, enquanto marca da experiência de um corpo, situa a essencialidade de considerarmos a dimensão do cruzamento entre a grande história (História) e a pequena história -a história individual e de nossos pertencimentos (Gebrim, 2020, p.172).
 
É na esteira destas discussões que penso ser importante a formação em direitos humanos em nosso campo, não sem estarmos advertidos de algumas fronteiras no que se refere à compreensão de sujeito a qual pretendemos sustentar nossa prática, na insistência em sua singularidade, em contraponto à discursos universalizantes e homogeneizantes, produtores de segregação, de mal-estar e de sofrimento psíquico.
 

1 Refiro-me ao trabalho coletivo junto à linha de pesquisa “Psicanálise e migrações: efeitos clínico-políticos dos deslocamentos”, do MIGRAIDH - Grupo de Ensino, Pesquisa e Extensão Direitos Humanos e Mobilidade Humana Internacional, da UFSM, responsável pela Cátedra Sérgio Vieira de Mello, coordenado pela Profª Drª Giuliana Redin e ao Núcleo Compartilha - Núcleo de Estudos, Pesquisa e Extensão do Programa de Pós Graduação em Psicologia da UFSM, que une os grupos GEPEPE - Grupo de Ensino, Pesquisa e Extensão em Psicologia e Educação, coordenado pela Profª Drª Taís Fim Alberti, e GEPEVICS - Grupo de Ensino, Pesquisa e Extensão sobre Violência e Contextos Sociais, coordenado pela Profª Drª Samara Silva dos Santos. 4 ED. 95 Entrelinhas

 
Referências:
GEBRIM, Ana. Psicanálise no front: a posição do analista e as marcas do trauma na clínica com migrantes. Curitiba: Juruá, 2020.
ROSA, Miriam Debieux. A clínica psicanalítica em face da dimensão sociopolítica do sofrimento. São Paulo: Escuta/Fapesp, 2016.