REPORTAGEM ESPECIAL

A formação em Psicologia baseada nos direitos humanos

Ética, educação, políticas públicas, relações étnico-raciais, gênero, sexualidade, deficiência são alguns dos temas sensíveis à sociedade que atravessam as práticas das/os psicólogas/os nos mais variados contextos e que precisam estar presentes, de forma transversal, nas graduações de profissionais da Psicologia. Essa perspectiva está presente nos princípios fundamentais que orientam a profissão, especificamente expressos nos itens I e II do Código de Ética. O trabalho das/os profissionais trabalhadoras/es da nossa categoria da Psicologia deve ser embasado na Declaração Universal dos Direitos Humanos, colaborando, assim, com a eliminação de quaisquer formas de opressão e violações de direitos.
 
Para a conselheira vice-presidenta do Conselho Federal de Psicologia (CFP), Ivani Francisco de Oliveira (CRP 06/121139), a formação em Psicologia é um momento oportuno para a introdução de conhecimentos importantes que contribuem também para o entendimento de que a subjetividade humana está relacionada a condições históricas, políticas e socioculturais e isso têm papel predominante nas características psicológicas das pessoas. “É importante que docentes de nível superior levem para análise e reflexão as desigualdades de raça, classe e gênero – de modo que futuras psicólogas e psicólogos consigam atuar de forma engajada em prol da eliminação de quaisquer tipo de preconceito e discriminação. Essa é a base mínima para atuar com o comportamento nas diversas abordagens possíveis. A postura ética e pedagógica precisa ser compromissada com a realidade da sociedade brasileira e a problematização especialem sala de aula pode ser uma excelente ferramenta de ensino para identificar as relações de poder sustentadas em gênero e raça que operam entre discentes, para em seguida introduzir as teorias sociais que elucidam os processos concretos da vida social.”
 
Ivani acredita que o conhecimento científico é sustentado em referências teóricas nas quais uma neutralidade é impossível. “Considerando que nenhum estudo ou saber pode abarcar o todo da vida, os conhecimentos são localizados geopoliticamente. Dessa forma, é importante que todas as disciplinas abordem as questões de gênero e raça, pois, sem a ampliação das teorias e aprofundamento em saberes dos mais diversos campos, a formação corre o risco de ser parcial em atender a população. Ao final da formação, o juramento que será feito é o comprometimento de colocar a Psicologia a serviço da sociedade brasileira, tarefa fadada ao fracasso se não conhecermos a realidade social que coloca em desigualdades mulheres, pessoas negras e indígenas, bem como toda a população LGBTQIA+.”
 
Entender as imposições sociais e de que forma contribuem com essas desigualdades é imprescindível para uma formação ética e alinhada com os direitos humanos. O capacitismo é uma dessas imposições e a formação precisa estar atenta a isso. “Nossa profissão se sustenta no Código de Ética que visa justamente o respeito, a defesa da dignidade e da emancipação. O capacitismo se sustenta na ideia de que há um único corpo plenamente humano, fazendo com quedeterminadas características funcionais/corporais, que são naturais da condição humana, sejam traduzidas em desigualdades”, afirma a psicóloga Vitória Bernardes (CRP 07/17267), mulher com deficiência, conselheira do Conselho Nacional de Saúde.
 
Vitória ressalta que a compreensão biomédica e capacitista da deficiência, que a coloca erroneamente como uma questão individual, ligada à doença/lesão, precisa ser enfrentada no fazer diário da Psicologia em seus diferentes campos de atuação. “Na Psicologia Organizacional e do Trabalho, por exemplo, percebemos reflexos desse capacitismo impedindo que as pessoas com deficiência sejam promovidas ou não recebendo o suporte necessário para que elas possam se desenvolver no ambiente de trabalho. Dentro da Psicologia Escolar/Educacional, precisamos trazer essa questão para a perspectiva da educação inclusiva, entender que as características de uma pessoa não determinam o que ela pode ou o que não pode fazer, ela não pode ser definida pelo que é incapaz de fazer, precisa ser estimulada nas suas capacidades. Precisamos entender que a deficiência é uma construção social que se caracteriza pela imposição de barreiras que restringem a nossa participação.”
 
A ausência e a naturalização da ausência de pessoas com deficiência nos espaços também precisa ser questionada. “Quantas pessoas com deficiênciaestão ocupando as escolas regulares, o mercado de trabalho formal, as universidades e os espaços de representação política, por exemplo? As pessoas precisam problematizar que a nossa ausência é reflexo desse capacitismo. Para além de sujeitos que vamos atender no dia a dia, as pessoas com deficiência serão colegas de profissão, trabalhadoras/es da nossa categoria e precisamos pensar, desde a formação, em estratégias para que elas tenham condições de permanecer nesses ambientes”, propõe Vitória. Ela ainda reforça a necessidade de a Psicologia rever o posicionamento sentenciador. “Não cabe mais a gente pensar na Psicologia como uma profissão que sentencia a normalidade das pessoas. Assim como temos posicionamentos muito nítidos em relação a não patologização da orientação sexual, por exemplo, precisamos entender que a deficiência não pode ser patologizada e que não cabe a nós atestar quem é normal ou anormal. Somos produtos da sociedade em que estamos inseridas/os, com atravessamento.”
 
A importância de futuras/os psicólogas/os considerarem as diversas dimensões da identidade e as interseccionalidades presentes nas experiências humanas, como gênero, raça, classe social, orientação sexual, entre outras, como parte da constituição psíquica, em sua singularidade, é defendida por Vera Pasini (CRP 07/03826), professora doutora do curso de Psicologia da UFRGS. “Considerando isso, os temas ligados aos direitos humanos e suas interseccionalidades devem ser trabalhados de forma transversal na formação em Psicologia, permeando todas as disciplinas e práticas, para que as/os estudantes compreendam que essas são questões a serem consideradas em qualquer espaço de inserção e em todos os âmbitos de atuação profissional. A discussão dessas dimensões pode ser produzida por meio da inclusão de conteúdos específicos sobre direitos humanos e interseccionalidades em disciplinas teóricas, discussões em grupos, como os Programas de Educação Tutoriais, e atividades práticas que abordem situações reais e promovam a reflexão quanto as múltiplas formas de opressão e discriminação presentes em nossa sociedade e, especialmente, na sociedade gaúcha. Além disso, a formação em Psicologia deve estimular o engajamento das/os estudantes em movimentos sociais e práticas comunitárias que promovam a defesa dos direitos humanos e a equidade social.”
 
Assim, a participação das/os estudantes de Psicologia nos movimentos sociais do campo da Saúde, especialmente àqueles ligados à Luta Antimanicomial oferecem uma perspectiva crítica em relação às práticas tradicionais da Psicologia, promovendo a reflexão sobre questões de poder, desigualdade e exclusão social, ampliando o olhar das/os futuras/os psicólogas/os para além do modelo biomédico e centrado no núcleo profissional, independentemente da teoria que orienta as práticas. “Envolver as/os estudantes com os movimentos sociais, participando de Fóruns, Conselhos locais, municipais e estaduais da saúde e intersetoriais proporciona a experiência de produção coletiva de políticas e práticas humanizadas e inclusivas, favorecendo o desenvolvimento de uma postura ética e comprometida com as questões do nosso tempo e com a construção de estratégias de resistência e superação de desafios”, acredita Vera.
 
No Brasil, muitos direitos sociais foram conquistados por lutas contínuas dos movimentos sociais e das entidades representativas de classe e a participação de futuras/os psicólogas/os nesse processo enriquece a formação. Na opinião de Rafael Wolski de Oliveira (CRP 07/14607) a aproximação de estudantes com esses movimentos se dá principalmente pelo incentivo de docentes e de trabalhadoras/es da Saúde, política pública em que muitas/os estudantes realizam suas práticas de estágio. “Os espaços formais de controle social são as conferências de saúde e os conselhos de saúde, mas existem outras formas de controle social que se dão no cotidiano dos serviços quando, por exemplo, a comunidade e trabalhadoras/es se unem para pressionar o poder público para garantir melhorias no acesso, contratação de profissionais, melhorias na infraestrutura etc. O Controle Social, no entanto, só funciona efetivamente se existe o engajamento e uma real participação popular. Nesse sentido, é necessário que novas gerações se incorporem nesses espaços e contribuam com suas vivências, perspectivas e formas de ser e estar no mundo.”
 
O protagonismo das/os usuárias/os da saúde mental pode ser também uma contribuição na formação. “Essa é uma conquista encarnada pelas intensas mudanças proporcionadas pela Reforma Psiquiátrica e que se materializam em espaços horizontais nos quais ocorrem manifestações, reivindicações e propostas para o avanço do cuidado em saúde mental, feitas pelas/os próprias/os usuárias/os. Isso tudo, sem dúvidas, impacta também na formação, pois é esse protagonismo que desejamos que ocorra entre as quatro paredes de um serviço de saúde mental, no qual usuárias/os da saúde participem ativamente da construção de seus projetos terapêuticos”, sinaliza Rafael.
 
Além disso, a atuação junto aos movimentos sociais pode contribuir com a formação da cidadania. “Além de possibilitarem que as pessoas se somem às lutas por uma sociedade mais justa, equânime e que avança na direção da superação de quaisquer formas de discriminação, esses espaços são como escolas de cidadania”, revela Rafael. Para ele, a aprendizagem sobre coletividade e o diálogo com as diferenças contribuem também para a prática em serviços nas políticas públicas de forma eticamente comprometida com a transformação social, com a defesa dos direitos das/os usuárias/os, com conhecimento robusto sobre Controle Social e contra quaisquer violações de direitos humanos.
 
“Essa aproximação proporciona uma prática contextualizada historicamente, em que a/o profissional sabe que aquela política pública foi resultado de muita luta de pessoas que o antecederame que é preciso seguir lutando cotidianamente para avançar e garantir direitos. Quando me aproximei do Fórum Gaúcho de Saúde Mental, movimento em defesa dos direitos dos usuários da saúde mental, ainda durante a minha graduação em Psicologia, o primeiro impacto que tive foi a horizontalidade em que diferentes pessoas, como usuárias/os, trabalhadoras/es, familiares e sociedade em geral discutiam e debatiam as pautas e desafios relacionados a esse campo. Certamente esse percurso contribuiu na minha formação como psicólogo e como cidadão.”
 
 
Movimentos sociais e a potência do coletivo na formação
 
O Projeto de Extensão da UFRGS “OCUPAS: Cidades, Resistências e Produção de Subjetividade” traduz toda a potencialidade do coletivo nessa aproximação entre formação e movimentos sociais. Confira o texto produzido pelo coletivo especialmente para a EntreLinhas:
 
Os movimentos sociais são pilares importantes para a construção de um estado democrático. É a partir da liberdade de expressão e da possibilidade de mobilização política coletiva que se constrói a garantia de direitos. A presença de psicólogas/os junto aos movimentos sociais é indispensável para uma prática aliada à realidade política dos territórios nos quais se atua.
 
Podemos pensar, desde uma perspectiva clínico-política, momentos nos quais os movimentos sociais promovem saúde mental e momentos nos quais a promoção de saúde mental por profissionais da Psicologia opera movimentos sociais no sentido atuar na luta pela promoção de direitos.
 
Os movimentos sociais muitas vezes promovem saúde mental junto aos seus coletivos no momento em que permitem uma agência perante situações nas quais boa parte da população é constantemente objetificada. Essa potência da ação envolvida pelo pertencimento e apoio coletivo é um modo de resistir às dinâmicas que, por meio da violência das opressões, buscam constantemente subjugar, subalternizar e retirar agência de pessoas que não se enquadram nas hegemonias dos privilégios que delimitam os ideais de eus de nossa sociedade. O movimento social, assim, é, ele mesmo, uma intervenção clínico-política que busca promover saúde mental de modo complexo ao constituir tanto agência quanto um coletivo de apoio mútuo.
 
Por outro lado, promover saúde mental envolve também a luta pela garantia de direitos. Olhar para a realidade material das comunidades, percebendo que a saúde envolve uma complexa trama de condições de possibilidade é fundamental para profissionais psis, em especial quando atuam em articulação com as políticas públicas. Assim, não há como promover saúde mental sem olhar também para o acesso aos direitos e para as redes de políticas públicas em geral, agindo também junto a essas tramas na busca por garantir acesso à alimentação, moradia, educação, assistência médica e jurídica, além do direito à cidade, ao reconhecimento das suas singularidades e desejos, o direito aos seus modos de inscrever-se em coletivos de pertencimento etc.
 
Essa perspectiva ampla e complexa de saúde mental é algo que aprendemos muito nas relações com os movimentos sociais e suas práxis que inclui a dimensão política e material.
 
Na relação com os movimentos sociais somos também muitas vezes interpeladas/os a problematizar os pretensos lugares de neutralidade e impessoalidade das/os psicólogas/os diante das dimensões inerentemente políticas da realidade das pessoas. Nos encontros com as territorialidades dos movimentos sociais somos levadas/os muitas vezes a tensionar e movimentar nossas teorias psis e seus pressupostos de atuação, posto que estes foram muitas vezes erigidos desde situacionalidades marcadas pela branquitude, pelo patriarcado, pela burguesia, pela cisheteronorma, pelo capacitismo.
 
Assim, é fundamental um exercício ético interseccional ao pensarmos na promoção de direitos de modo localizado, considerando as singulares posicionalidades e, também, as tramas de violências que efetuam a manutenção das relações de opressão-privilégio.
 
 
A prática interseccional é um exercício crítico pelo qual podemos problematizar as distintas posicionalidades em seus efeitos nos processos de subjetivação, especialmente na produção de opressões e privilégios desde as normas hegemônicas. A interseccionalidade é uma perspectiva que emerge da prática das mulheres negras junto aos movimentos sociais, sempre fazendo-nos pensar e agir sobre a complexidade das diferentes posicionalidades com seus atravessamentos de gênero, raça e classe junto ao movimento feminista e ao movimento negro. Assim, aqui retomamos a questão da relevância dos movimentos sociais como promotores de saúde mental junto da relevância da interseccionalidade, afinal, se trata de uma teoria-práxis política, crítica, que pensa e atua na formação de comunidades. E há uma importante ressalva aqui: nossas teorias psicológicas também carregam consigo as comunidades que lhes formaram e seguem, assim, formando comunidades que devem sempre serem foco de nossa reflexão ética interseccional na busca por problematizar a naturalização da ação violenta das normas (implícita ou explicitamente) nas escolas teóricas da psicologia. A Psicologia destituída de um exercício ético interseccional reitera constantemente os modos de compreender, sentir e intervir da branquitude, do patriarcado, da burguesia, da cisheteronorma, do capacitismo, ou seja, a psicologia destituída do constante (infinitivo e infinitesimal) exercício interseccional é um espaço tomado pelas violências da colonialidade. Como pensar uma saúde sem lugar, sem territorialidade, sem corporeidade? Como querer fazer juízos e avaliações sobre práticas de cuidado ou saúde, sem considerar onde se dão, em que condições de possibilidade?
 
 
Contribuição do Sistema Conselhos na defesa da formação com qualidade
 
Além de participar da construção das novas Diretrizes Curriculares Nacionais, publicada pelo Ministério da Educação, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) vem atuando no enfrentamento aos cursos totalmente à distância (EAD), em parceria com a Associação Brasileira de Ensino de Psicologia (ABEP). “O CFP defende que Psicologia se faz com presença e que o ensino à distância contribui para que a tecnologia tenha a finalidade de levar a/o estudante a compreender e utilizar as tecnologias digitais de forma crítica, reflexiva e ética, como recurso para acessar, disseminar e produzir conhecimento, mas a interação decorrente da presencialidade é fundamental para a formação em Psicologia”, afirma Ivani Francisco de Oliveira, vice-presidenta do CFP.
 
O Sistema Conselhos de Psicologia vem também apostando nas Referências Técnicas produzidas pelo Centro de Referências Técnicas em Psicologia e Políticas Públicas (CREPOP) como materiais importantes na formação de novas/os profissionais, preparando-as/os para atuar nas políticas públicas. “A Psicologia tem sido cada vez mais convocada a contribuir com a efetivação de direitos sociais atuando em políticas públicas. Por isso, mesmo não sendo uma atribuição do Conselho Federal de Psicologia, temos trabalhado fortemente para a constante melhoria da qualidade dos cursos e, consequentemente, termos profissionais melhor formados, prestando um serviço de qualidade para a sociedade”, avalia Ivani.
 
 
Estudar Psicologia é estudar...
 
Com o objetivo de trabalhar temas sensíveis à sociedade e que atravessam as práticas das/os psicólogas/os nos mais variados contextos e que precisam estar presentes na formação, o CRPRS lançou em setembro de 2023 a campanha “Estudar Psicologia é estudar...”.
 
A iniciativa da Comissão de Formação do Conselho destaca a importância de psicólogas/os estudarem temas relacionados aos Direitos Humanos.
Convidamos as/os entrevistadas/os desta reportagem a contribuir com essa reflexão completando a frase estudar “Para mim, estudar Psicologia é estudar...”:
 
“... caminhos para uma sociedade que seja de fato justa e igualitária. É entender que a vida humana só é plena em liberdade de viver sem medo, no bem viver coletivo.” – Ivani Francisco de Oliveira (CFP)
 
“... as relações humanas, é compreender o potencial humano, é reconhecer as estruturas que nos amarram para que as pessoas tenham ferramentas necessárias, inclusive para se organizar contra essas estruturas que nos adoecem, considerando aspectos de gênero, raça e deficiência.” – Vitória Bernardes
 
“...a complexidade da experiência humana nos diferentes contextos históricos, sociais e culturais, compreendendo seus atravessamentos na constituição da subjetividade.” – Vera Pasini
 
“.... é um exercício constante e inesgotável de aprofundamento das temáticas que constroem a sociedade.” – Rafael Wolski
 
“...instâncias psíquicas e processos de subjetivação; e estudar processos de subjetivação é, entre outras coisas, escutar territórios. Estudar os universos plurais que pulsam fora da academia e escorrem diante dos nossos olhos que muitas vezes parecem vendados.” – integrantes do Projeto de Extensão da UFRGS OCUPAS: Cidades, Resistências e Produção de Subjetividade.

 


Saiba mais sobre a campanha em crprs.org.br/estudarpsicologia