REFLEXÕES

O Projeto de Extensão “Diz Aí: Clínica Feminista e Antirracista na UFPEL” e o uso de Referências Técnicas sobre Relações Raciais

 
Danielle Soares Maurell
Eliana Duarte da Rocha
Nathalia Duarte Moura

Estudantes de Psicologia da Universidade Federal de Pelotas (UFPel)
 
 
Os fenômenos psicossociais cotidianamente nos espelham a relevância das referências técnicas de relações raciais na práxis das/os profissionais e das/os estudantes de Psicologia nos seus cenários de atuação. Apesar de nos dias atuais o racismo e todos os seus nichos serem pautas em todos os espaços de forma recorrente, o compromisso para com o imaginário social antirracista, na prática, não ocorre com a mesma sinergia. A narrativa de não ter conhecimento e exigir de pessoas negras que o racismo e suas factualidades sejam explicadas didaticamente por elas, é mais uma forma de colocá-las em uma posição perversa de violência e de inviabilização, ainda mais com todas as possibilidades existentes de se “apossar” dessas discussões. E os espaços psis não ficam isentos desses fenômenos, seja a clínica, em suas variadas performances, e do mesmo modo, a academia.
 
Os currículos acadêmicos dos cursos de Psicologia, seja em instituições federais, estaduais ou privadas, dificilmente abordam disciplinas nas quais se discutem as relações raciais, de gênero e de classe, do mesmo modo, são poucas/os as/os docentes que em suas cadeiras trazem bibliografias que não são eurocentradas. A trajetória da produção e reprodução de conhecimento no meio acadêmico/universitário se constituiu a partir da desconsideração dos escritos e produções de autores/as negros/as e suas temáticas. Em prol da manutenção do conhecimento científico - descrito como apolítico, neutro e objetivo - houve a implementação e perpetuação do epistemicídio, que opera sobrepondo os saberes “tradicionais” - brancos e eurocentrados - aos saberes dissidentes constituídos por culturas não-brancas/ocidentais (Carneiro, 2005). Essa dinâmica promove a anulação das pessoas negras como intelectuais, detentoras de conhecimento e fontes de saber, em um movimento de constante realocação das hierarquias raciais e subjugação das capacidades do corpo negro.
 
Há a equivocada interpretação de que as relações raciais e a discussão da raça em si são algo paralelo, secundário e talvez categórico ao interesse da Psicologia e de tantas outras ciências. É a armadilha que leva tanto a estudantes, profissionais, instituições de ensino ou ação, a caminharem ao encontro de uma práxis negligente, violenta, excludente e desumana. Ignorar a racialidade, o seu funcionamento e consequentemente as relações raciais, é ignorar a sociedade que se está inserida/o.
 
A resistência das pessoas brancas em falar, pensar e produzir estudos a respeito da branquitude parece estar alicerçada com a crença de que estas seriam a parte desracializada da população. Tal perspectiva coloca os grupos raciais não-brancos como objetos a serem investigados, promovendo o distanciamento da confrontação da temática da branquitude, mantendo a identidade racial branca como norma e o discurso sobre as relações raciais dubitável e rudimentar. O que leva à legitimação e reprodução das desigualdades raciais e conservação dos privilégios obtidos pela imutabilidade da estrutura racista da sociedade.
 
As atuações na Clínica Feminista e Antirracista - Diz Aí, nos trazem para cena, com nitidez, a importância de se pautar e apontar a branquitude enquanto raça, retirando-os desse lugar universal. É a partir dessa ótica que na práxis psi, se torna possível um caminho onde sujeitas/os não-brancas/os possam articular sua existência a partir de si e não da Outridade. Novos imaginários podem ser construídos. Buscando um caminho de uma democracia subjetiva. As Referências Técnicas, particularmente as “Referências Técnicas para a atuação de Psicólogas: Relações Raciais”, entram em cena para a comunidade psi como instrumentos colaborativos e políticos. A importância do uso das cartilhas como instrumentos didáticos anda junto com a experiência ao servirem de base para a atuação. Nos campos de estágios, proporcionou recursos para pensar e se posicionar diante do racismo e seus efeitos nas demandas que surgem. Dessa forma, a atuação pôde ser realizada por meio da pluralidade de métodos e bibliografias numa tentativa de desmantelamento dos alicerces racistas que atravessam as dinâmicas sociais, institucionais e relacionais-afetivas, que incidem sobre as experiências, os modos de vida e subjetivação das pessoas que buscam os serviços de acolhimento do “Diz aí: Clinica Feminista e Antirracista”.
 
Entendemos que estamos abordando uma tarefa que implica a todes, pois as experiências e expressões que estão no âmbito de vivenciar e se identificar como negra/o ou branca/o envolvem um conjunto de mecanismos sócio-históricos, de elementos e processos simbólicos, subjetivos e concretos que integram a demarcação da escala hierárquica da população brasileira. Esse escalonamento vai marcar as identidades, os modos de vida, de socialização e subjetivação. Para quebrarmos esse ciclo de perpetuação de uma única identidade subjetivizada, logo, humanizada, é de extrema importância que todes discutam esse tema na Psicologia, graduandas/os e profissionais. Para que a leitura feita dos modos de vida e processos psíquicos considere os contextos históricos, as contingências existenciais e os marcadores sociais, para que seja possível compreender toda a dinâmica social que constitui a/o sujeita/o, sem recair a reproduções violentas; significações negativas, socialmente construídas, da experiência de ser negra/o.
 
 

Referências:
CARNEIRO, Aparecida Sueli. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. 2005. Tese (Doutorado) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005.
CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Relações raciais: Referências técnicas para atuação de psicólogas/os. 2017.