PERSPECTIVA

Por uma formação ética, inclusiva e em defesa de uma sociedade justa e democrática

A Associação Brasileira de Ensino de Psicologia (ABEP) vem exercendo um importante papel nas articulações de ações que objetivam a construção de uma formação ética e de qualidade para as/os psicólogas/os brasileiras/os. Nesta edição da EntreLinhas em que propomos uma reflexão sobre a formação e sua interface com os direitos humanos, entrevistamos Iraní Tomiatto de Oliveira (CRP 06/2336), professora doutora em Psicologia e atual presidenta da ABEP.
 
 
Poderia descrever brevemente a função da ABEP, como se organiza e seus objetivos?
 
A Associação Brasileira de Ensino de Psicologia (ABEP) é uma associação civil sem fins lucrativos, uma associação científica que, nos seus 24 anos de existência, tem se dedicado à defesa de uma formação ética e de qualidade para as/os psicólogas/os brasileiras/os. Para isso, está em constante diálogo com a comunidade acadêmica, com as/os profissionais da área e de áreas afins, com o campo científico, com outras entidades da Psicologia e com órgãos governamentais que regulam a formação.
 
Promove uma série de atividades, tais como eventos, lives, fóruns de coordenadoras/es de curso, de professoras/es e orientadoras/es de estágio, de estudantes e cursos de atualização. Produz textos e referências sobre temas relacionados à formação. A ABEP mantém um curso para coordenadoras/es, que também pode ser realizado por professoras/es, e que visa ao aprofundamento e à atualização em temas centrais para a elaboração de um projeto pedagógico e para a gestão do curso. Ainda, publica um boletim mensal com informações e relatos sobre as atividades da entidade e notícias relevantes.
 
Tem uma diretoria nacional eleita a cada dois anos por suas/seus associadas/os, durante o Encontro Nacional, e núcleos regionais espalhados por diferentes regiões do país. Esses núcleos têm uma equipe gestora local e contribuem para capilarizar as ações da entidade pelo território nacional. Conta com associadas/os, que incluem profissionais e estudantes interessadas/os e comprometidas/os com os objetivos da ABEP.
 
 
De que forma a ABEP contribuiu para a construção das novas Diretrizes Curriculares Nacionais?
 
A Associação Brasileira de Ensino de Psicologia (ABEP) contribuiu amplamente para a construção das novas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN), do primeiro ao último dia do processo. Todo ele foi realizado em parceria com o Conselho Federal de Psicologia (CFP) e com a Federação Nacional dos Psicólogos (FENAPSI), que coordenaram e promoveram um amplo debate nacional, para a construção participativa e democrática de nossas diretrizes. A ABEP participou da idealização do processo, elaborou os textos geradores das discussões, esteve presente em muitas das 118 reuniões preparatórias organizadas por todo o Brasil, em todos os Encontros Regionais e no Encontro Nacional e na elaboração da minuta das DCN. Participou da apresentação do documento ao Conselho Nacional de Saúde, da apresentação ao Conselho Nacional de Educação (CNE), da consulta pública realizada pelo CNE e da discussão final com os membros da Comissão do CNE responsáveis por nossas DCN. E, depois, da luta por sua homologação, que durou quatro anos. Temos muito orgulho de termos, ao lado da categoria, lutado tanto e construído um processo tão importante e com resultados tão positivos.
 
As novas DCN da Psicologia não incluem tudo o que consideramos importante, porque são fruto de muitas negociações e as decisões finais são do CNE. Mas, consideramos que elas são um avanço importante em vários aspectos, como por exemplo: reafirmam e ampliam nossos princípios, definem de forma muito mais nítida as competências que devem ser desenvolvidas durante a formação, assim como os processos de trabalho da/o psicóloga/o, que são a base para as ênfases curriculares oferecidas por cada curso, aumentam a porcentagem da carga horária dos estágios obrigatórios e estabelecem que eles devem acompanhar todo o processo de formação, na interação contínua entre teoria e prática, e, entre outros avanços relevantes.
 
 
Qual o posicionamento da ABEP sobre o ensino da Psicologia EAD?
 
Considero que é necessário abordar essa questão sob dois aspectos: por um lado, o processo de liberação do EaD no ensino superior brasileiro, particularmente a partir de 2017, para a grande maioria dos cursos, e suas gravíssimas consequências, e, por outro, o caso específico da Psicologia.
 
O ensino superior brasileiro passou, nos últimos anos, por um processo de fragilização dos critérios, das exigências e do controle de qualidade por parte dos órgãos federais responsáveis, na direção da desregulamentação. Um dos elementos mais danosos desse processo foi a liberação sem critérios do ensino a distância, que resultou em um aumento descontrolado no número de vagas, em polos não vistoriados, e muitas vezes inexistentes de fato ou sem a mínima condição de funcionamento, e em uma queda ainda maior da qualidade já insuficiente dos cursos. As consequências são particularmente graves em algumas áreas, em especial nas profissões da saúde, que objetivam o cuidado com o ser humano, e também nas licenciaturas, precarizando ainda mais as condições da educação. Dados, inclusive oficiais, como os do ENADE, mostram nitidamente essa queda, e mesmo o Ministro da Educação tem repetidamente manifestado sua preocupação com a qualidade insatisfatória dos cursos, bastante agravada pelo EaD.
 
As justificativas de que o EaD visa à democratização e à ampliação do acesso à educação não se comprovam na prática. Com raras exceções, ela tem sido utilizada com vistas ao lucro desmedido daqueles que tratam a educação como mercadoria, e não como um direito constitucional. Cursos com mensalidades muito baixas, para atrair incautos, muitas vezes estão baseados em aulas assíncronas, gravadas, sobre temas genéricos, apresentadas a vários cursos diferentes durante anos seguidos. As práticas e os estágios, fundamentais em muitas áreas, não seguem os critérios mínimos determinados pela legislação.
 
Não temos cursos de Psicologia autorizados em EaD, e temos lutado muito contra essa liberação, mas é importante ver o que tem acontecido com outros cursos para analisarmos as consequências dessa política.
 
No caso específico da Psicologia, não vemos nenhuma possibilidade de uma graduação a distância que atenda os critérios mínimos de qualidade e adequação às características da área. Trata-se de uma profissão intrinsecamente relacional, na qual os saberes e práticas precisam da presença real para sua produção e desenvolvimento. A consolidação das competências básicas que compõem o perfil profissional da/o psicóloga/o só é possível a partir da prática real, em campo de trabalho, e na integração teoria-prática. Isso está bem elucidado nas nossas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) e na nossa prática diária.
 
A Associação Brasileira de Ensino de Psicologia (ABEP) tem desenvolvido ações importantes na luta contra o EaD na Psicologia, ao lado de parceiros como o Conselho Federal de Psicologia (CFP), a Federação Nacional dos Psicólogos (FENAPSI), o Conselho Nacional de Saúde (CNS), inclusive participando ativamente do Grupo de Trabalho criado pela Secretaria de Regulação e Supervisão da Educação Superior (SERES) para discutir uma nova regulamentação. E temos aprofundado essa discussão e produzido textos sobre o tema, que vale a pena ler. É fácil encontrá-los nas redes sociais da ABEP e no site do CFP.
 
Somos também contrários ao estabelecido na Portaria nº 2.117/2019 do MEC, que permite que até 40% da carga horária total dos cursos presenciais seja oferecida na modalidade a distância. Consideramos que essa porcentagem é excessiva, e tem trazido prejuízos importantes à qualidade da formação. O limite anterior a essa portaria, de 20%, é aceitável, mas nada além disso, como a prática tem demonstrado.
 
 
Quais serão as pautas prioritárias para a ABEP em 2024 ou que novas pautas estarão em evidência?
 
Uma das pautas mais importantes para a Associação Brasileira de Ensino de Psicologia (ABEP) diz respeito ao processo de implantação das novas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) e da revisão dos projetos pedagógicos dos cursos, com esse objetivo. Os cursos novos já devem iniciar adaptados às novas regras, e aqueles em andamento têm um prazo de dois anos para se adaptar. A ABEP já começou e continuará promovendo discussões e eventos com a finalidade de refletir e orientar essa implantação. E continuaremos acompanhando de perto as ações das diferentes instâncias do MEC, especialmente as relacionadas ao EaD, à avaliação dos cursos e à regulamentação em geral.
 
Nesse novo período que vivemos, desde o início de 2023, é fundamental participarmos de um amplo e necessário processo de reconstrução da valorização da ciência, do trabalho docente, que tem sido tão precarizado, e da qualidade dos profissionais que oferecemos à população brasileira.
 
Também daremos sequência às ações relacionadas com a regulamentação da Lei 13.935 – inserção de psicólogas/os e assistentes sociais nos sistemas de educação básica pública, ao lado da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE), Conselho Federal de Psicologia (CFP), Federação Nacional dos Psicólogos (FENAPSI), Conselho Federal de Serviço Social (CFESS) e Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS). Continuaremos como membros efetivos da Câmara Técnica da Comissão Intersetorial de Recursos Humanos e Relações do Trabalho do Conselho Nacional de Saúde, da qual participamos intensamente há muito tempo, e para a qual a ABEP foi recentemente reeleita como membro efetivo, e nos integrando às demais entidades do Fórum das Entidades Nacionais da Psicologia Brasileira. Apenas para citar algumas das ações mais relevantes.
 
Nossas pautas continuarão relacionadas à qualidade da formação, à ética, à inclusão, aos direitos humanos, à luta por uma sociedade justa e democrática, em cuja construção a educação tem papel fundamental, contra toda forma de preconceito e exclusão. Temos muito a reconstruir. E, quando nos preocupamos com a qualidade da formação, estamos na verdade defendendo o direito da população a serviços de qualidade.
 
 
Como a ABEP vem se articulando com o Conselho Federal de Psicologia e qual a importância desse trabalho em conjunto?
 
A Associação Brasileira de Ensino de Psicologia (ABEP) e o Conselho Federal de Psicologia (CFP) mantêm uma articulação constante, e entendemos que isso é imprescindível, porque formação – que é o foco da ABEP – e atuação profissional – que é o foco do CFP – são processos interdependentes, que devem ser pensados em conjunto. Todo o processo de construção e luta pela aprovação e homologação das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) foi feito em conjunto, e também com a participação da Federação Nacional dos Psicólogos (FENAPSI), integrando formação, atuação profissional e trabalho. Da mesma forma, temos essa integração na luta contra o EaD na Psicologia. Também, há muitos anos temos participado de Grupos de Trabalho instituídos pelo CFP para tratar de temas relacionados à formação, participamos juntos de eventos, produzimos material e referências técnicas.
 
E a parceria da ABEP não é apenas com o CFP, mas com diferentes Conselhos Regionais, seja a partir de nossa diretoria nacional, seja com nossos núcleos regionais. Vários Conselhos Regionais incluíram em seu planejamento estratégico parcerias com a ABEP, e ações conjuntas que têm sido muito produtivas para todos os envolvidos. Da mesma forma, a ABEP também inclui o Sistema Conselhos em seu planejamento e busca constantemente essa integração.
 
 
Na sua opinião, como temas relacionados aos direitos humanos vêm sendo trabalhados na formação de psicólogas/os? De que maneira essas pautas podem ser incluídas de forma transversal e não ficarem limitadas a uma disciplina?
 
É sempre difícil responder a uma questão geral sobre o que acontece nos cursos de Psicologia, porque eles são muitos e bastante diversos. Temos atualmente cerca de 1.300 cursos de graduação na área, espalhados por todo o território nacional, portanto com realidades regionais muito diferentes. Temos cursos de excelência e cursos bastante precários, com condições insatisfatórias, e todas as possibilidades no contínuo entre esses dois extremos. Cursos públicos e privados, grandes e pequenos, com e sem fins lucrativos, em universidades, em centros universitários e isolados, apenas para citar alguns itens dessa diversidade.
 
Os direitos humanos são, ou deveriam ser, um eixo central no processo de formação. E temos cursos em que isso efetivamente acontece, e outros que passam bem longe disso. A Associação Brasileira de Ensino de Psicologia (ABEP) aborda constantemente esse tema, em seus eventos, na participação em eventos de outras entidades, em nosso boletim. E consideramos que é preciso promover debates e dar muita atenção ao assunto, como fez o Sistema Conselhos em 2023, realizando uma série de eventos regionais. Participei do evento promovido pelo CRP 06, em São Paulo, e pude constatar sua grande contribuição.
 
Minha visão é a de que esse deve ser um tema transversal de todo o processo de formação, deve ser uma orientação central em todas as práticas e estágios, nas ações extensionistas, e deve fazer parte obrigatória de planos de ensino do projeto pedagógico. Mas, para que isso efetivamente aconteça, é preciso desenvolver um trabalho constante com coordenadoras/es de curso e de estágios, com orientadoras/es, supervisoras/es e professoras/es. Elas/es precisam ter conhecimento e consciência sobre a relevância dessa discussão, para que o tema não fique apenas nos projetos e nos planos, mas que efetivamente faça parte das ações, nas relações entre as pessoas envolvidas no processo de formação e na relação com usuárias/os dos serviços e ações das/os psicólogas/os.