REPORTAGEM ESPECIAL

Impactos das enchentes no RS em diferentes comunidades

As enchentes que assolaram o estado do Rio Grande do Sul em maio de 2024, evidenciaram ainda mais as vulnerabilidades e desigualdades presentes em nossa sociedade. Impactada por esse episódio, a Psicologia precisou se reinventar e questionar lacunas de sua formação. Grande parte da categoria profissional mostrou não estar preparada para atuar em um desastre como esse, sócio-político-ambiental, e o atual contexto nos indica que novos episódios voltarão a nos atingir. Cabe, portanto, à Psicologia estudar, apropriar-se de todos os aspectos que cercam esse tema e refletir sobre o impacto em cada território, compreendendo que as consequências foram ainda mais avassaladoras para comunidades negras, indígenas e quilombolas. 
 
“Foi no momento de ir a campo que apareceram lacunas e dificuldades que ainda enfrentamos para fazer uma entrega de atendimento de qualidade, considerando as especificidades dos atendimentos em situações de emergências e desastres e a necessidade de articulação com outros saberes e outros campos de conhecimento que nos ajudam a compor essa escuta de qualidade. Precisamos dos aportes da saúde coletiva, da saúde mental, dos direitos humanos entre outros.”, avalia a psicóloga Maria Luísa Pereira de Oliveira (CRP 07/04234), mestra em Saúde Coletiva e doutoranda em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, atua como psicóloga clínica e como psicóloga do Hospital de Clínicas de Porto Alegre e é ativista do movimento de mulheres negras feministas e pesquisadora dos estudos de gênero e das relações raciais.
 
Para Maria Luísa, as enchentes evidenciaram ainda mais uma das expressões do racismo estrutural que organiza a nossa sociedade: o racismo ambiental. “Ao contrário do que muitos dizem, esses episódios não são democráticos por não atingir todas as pessoas indiscriminadamente. As condições de vida de cada pessoa são determinantes para as possibilidades de recuperação diante dessas grandes crises. É a população negra que predomina entre aquelas pessoas que habitam os territórios mais vulneráveis, com pior acesso a bens e serviços”, afirma. 
 
“A Psicologia, como ciência e profissão, vem travando debates, estudos e pesquisas a partir das relações raciais. Atualmente, temos diversos coletivos e atuações que desenvolvem ações voltadas para o enfrentamento do racismo e a promoção da saúde mental da população negra brasileira, a fim de viabilizar melhores condições de vida e saúde no campo subjetivo. Ocorre que esse debate ainda não chegou à maioria da categoria, estando ainda limitado a profissionais negras/os e a pessoas que estão atentas a essas questões.”  
 
Conforme Maria Luísa, o racismo ambiental, como conceito, surgiu na década de 1980, no âmbito da luta pelos direitos civis da população negra, mas pesquisadoras/es alertam que a compreensão sobre as vulnerabilidades de raça e classe a riscos e desastres já era apontada muito tempo antes pelas comunidades tradicionais. Aqui no Brasil, Rita Maria da Silva Passos explica racismo ambiental como a carga desproporcional dos riscos, dos danos e dos impactos sociais e ambientais que recaem sobre os grupos raciais e étnicos mais vulneráveis.
 
“No campo da saúde mental e no contexto da catástrofe atual, precisamos nos dar conta de que o racismo estrutural, seguidas vezes, impede que possamos enxergar o sofrimento intenso produzido por uma ruptura violenta de vínculos. E, muitas vezes, ao longo do desenvolvimento do sistema colonial escravista, evitar as manifestações explícitas de luto foi a estratégia de preservação de vida da população negra. Precisamos pensar sobre os lutos não reconhecidos, que tanto lemos nos materiais que vêm sendo produzidos para orientar as/os profissionais nas intervenções nesse contexto de catástrofe climática. Para ofertar cuidado respeitoso e de qualidade, precisamos ir além do que estamos acostumadas/dos a ler na literatura sobre fatores de risco e fatores de proteção. Como nos diz Emiliano de Camargo David ‘torna-se imperioso escutar as vozes descoloniais que nos chamam para resgatar a humanidade de negras e negros através de um processo psicológico articulado às consciências econômicas e sociais’. Somente assim a população negra poderá ter seu sofrimento reconhecido e validado, o que possibilita a superação.” 
 
A psicóloga Charlene da Costa Bandeira (CRP 05/66070), mestranda na Universidade Federal Fluminense e pertencente à Comunidade Quilombola Macanudos e ao Ilé Asé Aloyá ÌfoKànrán, em Rio Grande, ressalta um desafio histórico vivenciado por essas comunidades: a invisibilidade. “Devido a um processo do colonialismo, de apagamento de nossa história, as pessoas não reconhecem esses territórios. E se não existimos, não existem políticas públicas voltadas para as nossas comunidades.” Ela explica que as comunidades próximas à Lagoa dos Patos, por exemplo, sofrem frequentemente com cheias, precisando sair de suas casas ou sendo afetadas economicamente, já que dependem da pesca para o sustento, mas essas situações não ganham visibilidade. “Essas chuvas não foram provocadas por uma ação natural. São resultados da forma como o nosso Estado e as empresas se relacionam com a natureza, em um movimento em busca do lucro. O problema é que as pessoas mais afetadas são as que lutam e protegem essa natureza.”
 
Por se relacionarem de uma outra forma com a terra e com o meio ambiente, o conceito de saúde mental é diferente para as comunidades quilombolas e a Psicologia, em sua atuação, precisa contemplar essas especificidades. “É preciso pensar em uma Psicologia que de fato faça sentido para esses povos. Durante a minha formação na FURG criamos o conceito de psicoquilombologia, uma metodologia de trabalho que reconhece saberes tradicionais, que olha para a terra e para sua relação com o desenvolvimento de identidade e pertencimento a partir do território, estabelecendo uma relação que pessoas urbanas não têm. Para as comunidades quilombolas, a saúde mental vem do território e é coletiva. Nossas comunidades não têm a titulação de terra, ou seja, a terra é nossa, mas de fato não é, temos limitações para plantar, pescar, comer, deixar minha filha brincar e explorar o território, essas são questões que afetam a saúde mental. Além disso, para que eu esteja bem, minha comunidade precisa estar bem, isso quer dizer que não pode passar fome, tem que ter acesso a seu território e ter saberes e espiritualidade respeitados. Diante disso, é fundamental que a/o profissional da Psicologia saiba ouvir e não patologizar nosso modo de vida.”
 
As comunidades indígenas do Rio Grande do Sul também foram impactadas em graus variados, implicando em evacuação total do território, dificuldade ou ausência de comunicação, acesso ao território, água e danos às estruturas de saneamento e saúde. Conforme a psicóloga Jaqueline Medeiros S. Calafate (CRP 19/004149), Doutora em Psicologia Clínica e Cultura e responsável da Área Técnica de Atenção Psicossocial e Promoção do Bem-Viver Indígena na Secretaria de Saúde Indígena do Ministério da Saúde (SESAI/MS), direta e indiretamente, 38 comunidades foram afetadas, gerando impactos em, aproximadamente, 6.524 indígenas em 2.132 famílias. 
 
Desde os primeiros alertas emitidos pelo Instituto Nacional de Meteorologia sobre a possibilidade de impactos humanos e ambientais devido às chuvas intensas na Região Sul do país, o Comitê de Resposta à Eventos Extremos na Saúde Indígena da SESAI/MS iniciou o monitoramento da situação das aldeias assistidas pelos Polos Base do Distrito Sanitário Especial Indígena Interior Sul (DSEI/ISUL). Dos 12 Polos existentes nessa região, sete localizados no RS relataram impactos por conta das chuvas. “A área de Atenção Psicossocial tem se mostrado primordial no atendimento emergencial em saúde e acolhimento psicossocial das comunidades indígenas atingidas por desastres. A área da Saúde Mental tem sido reconhecida atualmente como fundamental no processo de mitigação de riscos em emergências e desastres. Sua atuação perpassa por todas as fases do processo, desde a preparação (antes da ocorrência) até a resposta e reabilitação (durante e após). Diante do contexto e da necessidade urgente de apoio psicossocial aos povos afetados pelas enchentes e também da necessidade de fortalecer as Equipes Multidisciplinares de Saúde Indígena para atuarem no enfrentamento deste evento e, tendo em vista que tais profissionais também foram afetados materialmente, fisicamente e emocionalmente por esse evento, considerou-se fundamental, num primeiro momento, o acompanhamento dos mesmos. Dessa forma, a Sesai procurou se organizar desde o início deste evento para o acolhimento e acompanhamento dos indígenas e profissionais do DSEI Interior Sul”, nos conta Jaqueline.
 
A construção do primeiro Plano Pós-emergencial em atenção psicossocial indígena produzido pela SESAI buscou articular ações coordenadas de respostas às demandas de cuidado dessa natureza, produzidas ou intensificadas pela emergência de enchentes e inundações, bem como a mitigação dos impactos em saúde mental esperados num contexto de desastre ambiental. “As ações adotadas buscaram conjugar também a articulação com os especialistas das medicinas indígenas das etnias atingidas, bem como o fortalecimento das estratégias e tecnologias comunitárias de cuidado, a fim de garantir que fossem preservadas as cosmovisões de cura e o significado atribuído pelas diferentes comunidades atingidas para esse tipo de catástrofe climática”. 
 
 
Para Jaqueline, a Psicologia ainda tem muito o que aprender sobre manejo de populações étnicas em contexto de emergências e desastres, uma vez que os protocolos utilizados comumente para as demais populações não respondem às necessidades, tampouco as fases de intervenção necessárias a essas populações. “São formas distintas de significar o evento e, portanto, maneiras também distintas de manejar o sofrimento. Produzir cartilhas e atuar com equipes de voluntários da Força Nacional do SUS não foi, por exemplo, uma alternativa possível para nós da SESAI nesse contexto, uma vez que expor os indígenas a pessoas que não possuem vínculo nem conhecimento de suas realidades pouco oferecia a essas pessoas. Foi necessária uma intervenção muito mais cuidadosa e estratégica, fortalecendo profissionais que já possuíam vínculo com os indígenas para a realização dos atendimentos e a garantia dos acompanhamentos”.
 
A Psicologia precisa, portanto, estar preparada para promover ações considerando as especificidades de cada território. Para isso, um trabalho de prevenção, ou seja, de gestão integrada, também é fundamental. Pensar na gestão integrada significa compreender, atuar e intervir em todos os aspectos que condicionam o risco, sejam eles de ordem física, ambiental e/ou psicossocial. Foi partindo desse princípio, que a Defesa Civil do Recife vem desenvolvendo uma gestão integrada do risco, focando em ações descentralizadas e permanentes nos territórios, estabelecendo uma administração de proximidade, com visão sistêmica dos espaços e medidas de Redução dos Riscos de Desastres com a população por meio da atuação de equipe técnica multidisciplinar, na perspectiva de estimular a percepção do risco, autoproteção e fortalecer a resiliência comunitária para redução de risco e desastres.
 
“A Gestão de Redução dos Riscos de Desastres como um processo social permanente e contínuo, sustentado pela atuação conjunta das políticas públicas com suas estruturas institucionais e com o olhar da comunidade, voltado ao enfrentamento direto das vulnerabilidades, exposição e ameaças existentes no território do Recife. A Estratégia de Gestão de Redução dos Riscos de Desastres da Secretaria-Executiva de Defesa Civil (Sedec/Recife) considera também as ameaças climáticas, pois as origens não são meramente voltadas para fatores naturais, sendo fruto de ações humanas e sua incidência nos processos de formação da sociedade. Então Governança e Participação Social são vistos como pontos estratégicos”, explicam as assistentes sociais da SEDEC/Recife Giselle Vieira (especialista em Intervenção Psicossocial com Grupos em Situação de Risco e atua como Gerente Geral de Atenção Social da Secretaria Executiva de Defesa Civil) e Maria Afra Guedes (especialista em Gestão das Emergências e Desastres, mestre em Políticas Públicas).
 
O escopo do trabalho da Defesa Civil requer uma análise e abordagem sistêmica das problemáticas e complexidades vivenciadas no cotidiano, seja na promoção de ações de gestão de risco ou no gerenciamento durante e pós desastres junto à população. “Considerando o atual contexto de crise climática, o trabalho integrado e multidisciplinar inserido na estrutura da Defesa Civil tem se tornado cada vez mais necessário e urgente, diante dos impactos causados pelos desastres”, destacam. Neste sentido, a Defesa Civil do Recife incluiu no seu corpo técnico servidores efetivos de diversas áreas de atuação: Engenharia, Serviço Social, Psicologia, Geologia, Geografia, Arquitetura, desde o ano de 2008, integrando diferentes competências técnicas, teóricas e metodológicas.
 
“A atuação multidisciplinar contribuiu para ampliar as ações e fortalecer a gestão de risco da Defesa Civil no município. Possibilitou também maior autonomia ao órgão, garantindo agilidade no diagnóstico preventivo, nas intervenções para mitigação e nas respostas às situações de emergência e desastres, considerando a abordagem sistêmica dos aspectos geológicos, hidrológicos, estrutural, social e psicológico”. Para elas, é de suma importância a inserção de profissionais da Psicologia na Defesa Civil, com a construção de um trabalho pioneiro, com foco nas ações preventivas em âmbito comunitário e familiar, estimulando uma dinâmica de mudança de cultura, de percepção de risco da população local, fortalecimento da resiliência comunitária e de construção de redes de apoio e solidariedade. “As/Os profissionais atuam também na preparação para situações de emergências e desastres e prestam assistência e acompanham as pessoas afetadas por desastres, identificando possível problema comportamental, afetivo e emocional pós evento. E no processo de recuperação dos eventos adversos e desastres tais profissionais fortalecem a manutenção da segurança e confiança das comunidades assistidas em situação de Emergências”, exemplificam.