REFLEXÕES

A pororoca do encontro da Psicologia com as águas

Na casa em que costumeiramente habito, a chuva que vem de boas, vai sempre em direção contrária ao vidro da janela da minha sala de fazer versos. Na primeira semana de maio, quando a chuva desandou em seu tino, ela vinha ao encontro da vidraça dos versos e escorria pegajosa, como que escrevendo recados feitos dum timbre translúcido. Escorria pegajosa e se juntava ao rio formado no leito da rua. As lavandas, cansadas com o peso que as fustigava, deitavam contra a grade inerte e choravam um descanso feito de abandono.
 
As águas pegajosas foram escorrendo e se juntando com outras águas pegajosas, encheram valetas, meios-fios, bueiros, córregos, riachos e rios. Arrastaram lamas e esgotos. Espantaram ratos e baratas. Chamaram os jacarés. Ignoraram os astros e os horóscopos e escreveram suas próprias destinações, com outros caminhos, outras sinas e outros desígnios. Foram se juntando nos vales. Se misturaram com águas barrentas e com barragens. Barragens que não são um amontoado de barros, mas que formam taipas que barram o fluxo das águas incontidas pela natureza, que barram as intensidades para produzir energias – elétricas energias.
 
Pensar o tempo em que estamos vivendo, implica em olhar para o que fizemos do planeta, até aqui, e em reconhecer que a vida turva, encharcada e inundada, chama-nos a compor uma Psicologia que atue não somente na emergência do desastre, mas principalmente, na atenção às ecologias mentais, subjetivas, sociais, políticas, estéticas, ambientais, que compõem a tessitura dos muitos tempos que resultam na atualidade em que estamos a viver.
 
Assim, olhemos para o fato de que um cenário de emergência e desastre não interrompe os modos como a vida acontecia, antes dele. Iniciado esse tempo, tudo o que existia antes, segue existindo e ainda mais, toma proporções maiores ou se transforma. Os adoecimentos, os sofrimentos, os preconceitos, as discriminações, as interseccionalidades, os atravessamentos, as intolerâncias, continuam existindo e, em tais condições, são ampliados. Esse cenário não recorta o tempo da vida e nem deve tornar a vida, algo a ser patologizado ou medicamentalizado.
 
Precisamos reconhecer outros territórios, outras territorialidades, outras desterritorializações e outras reterritorializações. Precisamos reconhecer que muitas comunidades não poderão mais voltar a existir nos mesmos lugares de antes; que os modos de fazer gestão pública, de operar nossos fazeres, não serão mais os mesmos, e que os modos de ser usuário dos serviços, dos equipamentos, das políticas públicas e do planeta, não serão mais os mesmos.
 
É dum desatino sem par, juntar as histórias varridas, arrastadas, lavadas, enlameadas pelas águas; histórias ajuntadas em montes, em montes de entulhos. Histórias de dor, de cor, de flor – não desabrochada, de vidas idas, desabridas, desinventadas, descompassadas. É dum desatino sem par, pensar que a vida que pulsava e também a vida guardada, virou entulho. Entulho de galhos, metais, móveis, restos inomináveis, carros, lixos vários, desatinos sem par. Entulhos de existências atulhadas de desafetos, de desamor, de dissabor, de desandor. Entulhos de afetos muitos, amorosidade, alegria, poesia, descabimento em si, ternura, simplicidade, desajuste ao ajustado, duma corredeira que vira rio. Para onde haveremos de carregar tanto entulho? No que haveremos de transformar os desencontros que esses encontros nos trazem? 
 
É olhando para isso, que destacamos o lugar da Psicologia na composição de um outro desenho para as ecologias e para a atenção em saúde mental, não propriamente para olhar no fundo dos olhos do que há de pior e que nos olha, toca, vê, abocanha, arranca as vísceras, mas para olhar no fundo dos olhos das existências várias e contagiar a compor com o que há de mais potente na vida das gentes. É da potência, que precisamos cuidar. Da desvitalização que nos consome, o sistema que nos devora, já cuida. 
 
O que a Psicologia precisa aprender a fazer, não é somente correr e se escorrer a atender as crises, riscos, emergências e desastres. Agora é o tempo em que convidamos a Psicologia, as gentes, os governos públicos, as dores, a categoria, a ouvir a fúria e a braveza dos rios e das águas. Convidamos a categoria a respeitar a força das águas. Não é o momento ou o tempo sobre o que nós, humanos, temos a dizer. É o momento para entendermos o curso dos rios e o que eles têm a nos dizer, lembrando Ailton Krenak, quando nos diz: “respeitem a água e aprendam a sua linguagem. Vamos escutar a voz dos rios, pois eles falam. Sejamos água, em matéria e espírito, em nossa movência e capacidade de mudar o rumo, ou estaremos perdidos”. 
 
Maria Luiza Diello | CRP 07/08488 
Conselheira Tesoureira do CRPRS – Gestão 2022/25.