PERSPECTIVA
A Psicologia na produção de novas ecologias
Para refletir sobre o impacto das enchentes para a Psicologia, a revista EntreLinhas entrevistou a Diretoria do CRPRS. A conselheira presidenta, Míriam Cristiane Alves, o conselheiro vice-presidente, Ademiel de Sant’Anna Junior, a conselheira tesoureira, Maria Luiza Diello, e o conselheiro secretário, Luis Henrique da Silva Souza, destacam as principais iniciativas do Sistema Conselhos de Psicologia diante desse desastre e revelam o que esperar da profissão.
Por que devemos falar em um desastre-sócio-político ambiental?
O desastre sócio-político-ambiental que atingiu o estado do Rio Grande do Sul em maio de 2024 não pode ser descrito como um evento desvinculado dos modos de viver que compõem a sociedade. As águas que caíram sobre o RS estavam previstas para serem dispersas entre vários estados brasileiros, mas ficaram represadas por uma massa de ar quente advinda dos modos de produção e cultivo realizados no Norte, Centro-Oeste e Sudeste do país. Esses eventos cataclísmicos, cada vez mais recorrentes, mostram-nos a necessidade de repensar a territorialidade e os modos como entendemos a sociedade em níveis micro e macropolítico. Podemos dizer que vivenciamos os usos do planeta de modo predatório e isso nos coloca a ocupar os diferentes territórios, de forma a acentuar as desigualdades e exacerbar as práticas de destruição. Os desastres que vêm ocorrendo no território do RS não se diferenciam de outros desastres que vem acontecendo em outros lugares. Deslizamentos, enchentes, rompimento de barragens, secas, queimadas etc., tornaram-se situações corriqueiras e normalizadas, no imaginário da maior parte das pessoas. A invasão das cidades aos territórios dos rios e dos mares, é marcada pela produção de beleza de tais regiões, mas poucos olham para os efeitos danosos dessas situações. Lembremos que as formas como nos relacionamos com a natureza são fundamentais, especialmente considerando que muitos desastres ocorrem devido à ocupação inadequada de espaços e dos recursos, assim como à má gestão pública; além disso, cabe assinalar, que fatores relacionados à segregação-sócio-espacial determinam que as pessoas que mais sofrem com esses desastres são aquelas em situações de vulnerabilidade social. Destacamos, assim, a interseccionalidade desses problemas, em nosso trabalho, e a importância de contemplarmos isso em nossas atuações.
Após esse desastre no RS, o que esperar da Psicologia daqui para frente?
A Psicologia – outrora desenhada, pensada e vivenciada a partir de situações relativamente controladas pelas experimentações humanas – vem sendo, reiteradamente, convocada a pensar e atuar em contextos de extremas vulnerabilidades, como situações de emergências e desastres, fome, falta de moradia, precárias condições de acesso à renda. Vale lembrar que vivemos num sistema capitalístico que privilegia alguns, bem remunera outros e segrega ou condena à precariedade todos aqueles que não servem aos seus propósitos, que geram a seca, as queimadas, o desmatamento etc. Em maio de 2024, a Psicologia foi muito mais acionada e convocada do que em qualquer outro cenário ou acontecimento e isso exige que nossa profissão seja muito mais talhada a lidar com esses cenários, passando pela inclusão dessas temáticas nos currículos de formação acadêmica, assim como, pela produção de estratégias de atenção e atuação frente aos mesmos. Enfim, é preciso ampliar o olhar para a Psicologia, que pode atuar na produção de novas ecologias subjetivas, sociais, políticas, ambientais etc., que provoquem aos existires sustentáveis e que não seja mais uma psicologia que atente somente para os danos e seus efeitos.
Como está sendo articulada a parceria do CRPRS com o Poder Público para a atuação da Psicologias nas Emergências e Desastres?
Compreendemos o papel da Psicologia na composição de estratégias de resposta para o curto, médio e longo prazo, o CRPRS transformou o seu Grupo de Trabalho em Emergências e Desastres (setembro/2023) em Comissão Permanente de Ecologias, Emergências e Desastres (maio/2024). Como resposta imediata, o CRPRS mapeou as áreas afetadas pelas chuvas, com foco na categoria e em seus locais de atuação, articulando com o diagnóstico realizado pelo Estado, partindo do entendimento de que a rede de saúde mental seja estratégica para compor uma resposta às situações de emergências e desastres. Esse mapeamento teve como foco os 78 municípios em que foi decretado estado de calamidade pública, tendo como parâmetros, a quantidade de equipamentos de saúde em cada município, de psicólogas/os nesses equipamentos; de profissionais de Psicologia com registro ativo e residentes nesses locais e as representações das Secretarias de Saúde e das Coordenadorias de Saúde. Com esse mapa, pudemos realizar uma composição interinstitucional com o Governo do Estado do Rio Grande do Sul, aprimorando e ampliando essa intercambiação estratégica e política, a partir dos diagnósticos realizados pela Secretaria Estadual de Saúde, e, dessa forma, poder construir, propor e adaptar ações específicas e condizentes com as realidades locais, para cada uma das 19 regiões de saúde atingidas, seja por inundações, enchentes ou deslizamentos. A composição e cruzamento de mapas, além de aumentar a compreensão das áreas atingidas, constitui-se em ferramentas que subsidiam ações frente à gestão de emergências e desastres, podendo amplificar as possibilidades de atuação nas redes de saúde mental sem ofuscar o protagonismo dos territórios e da construção de redes de afeto e acolhimento das profissionais e entidades locais. Cartografamos não somente para mapear, mas principalmente, para entender as diferentes sedimentações de campos de rede e de territórios, para assim, compor as ações estratégicas dirigidas à atuação da categoria no cenário de produção de diferentes ecologias e de danos que culminam nos cenários de emergências e desastres. A partir disso, o CRPRS, numa parceria com o Conselho de Secretarias Municipais de Saúde do RS (COSEMS), em função da publicação das Portarias 300 e 327 pela Secretaria Estadual da Saúde, que viabilizam o financiamento para a contratação de equipes multiprofissionais para atuarem nos 92 municípios atingidos de forma mais intensa pelas enchentes, compõem as Rodas de Orientação Territorializadas, visando a orientação à categoria que viria a atuar em razão dessas duas portarias, assim como, aos profissionais já atuantes nas Redes e, numa ação interdisciplinar, aos demais componentes das equipes. Esse processo foi desenvolvido em duas etapas, tendo sido realizado em sete diferentes regiões e com dois encontros em cada uma delas, totalizando quatorze encontros.
O que o mapa da destruição em nosso estado nos revela? Podemos fazer uma análise das regiões mais afetadas?
Se olharmos o mapa geográfico veremos que o movimento mais intenso das águas se deu exatamente nos percursos seguidos pelo processo de colonização do território gaúcho, o que passa pelos tipos de uso do solo, pela implantação de recursos de infraestrutura, pela destruição da mata ciliar e por vários outros aspectos, que encontram com a instalação de áreas de habitação, próximas aos rios, o que, nas situações de enchentes, amplia as condições de risco às populações aí adscritas. Ao analisarmos o que ocorreu no RS, podemos perceber que catástrofes, emergências e desastres não devem ser naturalizados, mas devem ser examinados com muito cuidado, pois são influenciados por uma série de fatores que os tornam complexos. Predomina um pensamento hegemônico que considera esses eventos como rotineiros ou fenômenos naturais, desvinculando-os de um modo de produção, exploração e ocupação dos territórios. Não podemos atribuir a responsabilidade apenas ao fato de que as águas não tiveram vazão, que o solo foi inundado pelo alto volume de chuvas ou que os ventos e a massa de ar quente dificultaram esse processo. Adotar essa perspectiva implica o risco de simplificar o fenômeno como um evento natural. No entanto, o perigo de tal abordagem é que a morte se torna vista como um resultado natural, assim como a perda de casas e vidas. Portanto, é fundamental reconhecer que, se continuarmos a extrair matérias-primas, promover o desmatamento, realizar queimadas, poluir rios e ocupar áreas de forma desenfreada, sem pensar em cidades sustentáveis, estaremos perpetuando um sistema que devastará nosso planeta e gerará essas catástrofes. Além disso, naturaliza-se a ideia de que alguns desastres, especialmente os climáticos, são comuns e próprios de determinadas regiões. No entanto, ignoramos que, tanto em questões micro, quanto macro políticas, o incentivo ou a falta dele para o financiamento de políticas públicas ambientais e ecológicas pode ter efeitos devastadores, como os que estamos experienciando atualmente. E isso é um indicador de que certos corpos e populações sofrerão muito mais que outros, pois trata-se também de uma atualização do processo de colonização e necropolítica.
De que forma o Sistema Conselhos de Psicologia acolheu o Rio Grande do Sul?
Enquanto instituição nos preocupamos como cada profissional foi atingido em sua particularidade, porém seria impossível darmos conta de cada situação. Assim, procuramos atuar de uma forma que os impactos pudessem ser minimizados. Uma das formas que encontramos foi de levar ao CFP a situação dos profissionais e pensarmos a questão econômica, frente a impossibilidade de algumas/uns profissionais estarem trabalhando ou tendo que usar do seu poder econômico para reconstruir aspectos básicos das suas vidas. Assim, entra em atuação Resolução Nº 007/2024, que determina a postergação do vencimento, sem incidência de multas, juros e correção monetária, da anuidade profissional, relativas ao exercício de 2024. No mais, tivemos o apoio e o suporte dos demais Conselhos de Psicologia Regionais que já vivenciaram ou vivenciam situações recorrentes de emergências e desastres, e que vêm constituindo processos de atenção, cuidado e orientação nesses cenários, assim como, para aprovação na Assembleia de Políticas, da Administração e das Finanças (Apaf), das medidas necessárias para contemplar a situação da categoria em nosso estado. Enquanto Gestão, poder contar com esse aporte prático e afetivo do Sistema Conselhos, foi fundamental para nos fortalecer na condução dos processos de trabalho que se fizeram necessários nesse percurso.
Que medidas estão sendo pensadas pelo CRPRS para beneficiar psicólogas/os diretamente atingidas/os pelas enchentes?
Queremos destacar a importância das conversações que vimos tendo no Sistema Conselhos, com relação à pauta Ecologias, Emergências e Desastres, e de todos os encaminhamentos sócio-técnico-políticos que vimos produzindo ao longo dos dias, mas reconhecemos também, que precisamos ampliar a reverberação a este momento e contemplar a categoria que é atingida diretamente, pelos danos causados pelos cenários já instalados e que haverão de acontecer recorrentemente, em diferentes territórios do nosso país. Considerando, então, o cenário devastador que vivenciamos em nosso estado, bem como, o fato de que várias/os psicólogas/os terem sido atingidas/os diretamente pelas enchentes ou mesmo, indiretamente, por seus efeitos, o CRPRS tem envidado esforços na busca de medidas para resguardo da categoria profissional, no enfrentamento aos efeitos da calamidade pública que assola o Rio Grande do Sul, por conta dos eventos climáticos extraordinários. No mais, realizamos levantamento das/os profissionais que foram atingidas/os pelas enchentes, visto que, além das questões relacionadas à anuidade, compomos ações de atenção e orientação à difícil situação vivenciada por tantas/os colegas em nosso estado e, assim, temos envidado esforços para compor o melhor acolhimento, acompanhamento, orientação e condução dos processos de trabalho que estão sendo constituídos em função disso que estamos vivenciando, para cruzarmos essa devastação, da melhor forma possível e o rápido restabelecimento das condições humanas, sociais, profissionais, pessoais, afetivas, emocionais e práticas, para a recomposição das suas vidas e existências, não somente para que novamente estejam dadas as suas condições de trabalho, mas principalmente, para que estejam dadas as suas condições de viver e viver do modo mais sereno, tranquilo e alegre possível.