REPORTAGEM ESPECIAL - PARTE 2

50 anos do CRPRS: reunindo memórias para reconstruir a história

Na luta pela garantia de direitos

Vera Lucia Pasini (CRP 07/03826), integrante da Gestão ComPosição (2010-2013), ressalta o importante papel que o CRPRS teve nas discussões que estavam presentes na sociedade da época. “Nosso Conselho sempre trouxe à tona e esteve à frente de muitas discussões importantes para a comunidade gaúcha, como a Lei do Ato Médico, a Reforma Psiquiátrica, a maioridade penal, os direitos de crianças e adolescentes, a mobilidade urbana, questões relacionadas às políticas de álcool e outras drogas diante de um recrudescimento de uma lógica punitiva em relação a esse tema”.
 
Vera explica que o retorno do debate em torno de uma nova regulamentação da profissão de Medicina refletiu nos fazeres das demais profissões do campo da saúde. “O Projeto de Lei do Ato Médico foi um tema no qual o nosso plenário precisou se dedicar com muito afinco, defendendo não só o exercício da Psicologia, mas o exercício de outras profissões que, naquele momento, colocavam-se como subalternizadas ou dependentes do exercício da profissão da Medicina. Diante disso, estivemos, em muitos momentos, nas ruas, participando de grandes mobilizações, defendendo que a Psicologia pudesse ter o seu lugar”.
 
O trabalho do CRPRS teve contribuição importante para a sociedade gaúcha em janeiro de 2013, diante do incêndio da boate Kiss. “Participamos ativamente desse acontecimento”. O Conselho foi referência, auxiliando o governo na organização do atendimento a vítimas e familiares, utilizando como base sua recém-inaugurada subsede em Santa Maria. Antes disso, tínhamos tido uma experiência de atuação em uma enchente em São Lourenço do Sul que destruiu parte da cidade. A atuação da Psicologia em emergências e desastres, que começava a surgir nas pautas relacionadas à profissão, ganhou destaque nas ações do CRPRS a partir desse acontecimento. Tema que voltou com força em 2024. "O tempo vai passando e a gente tem a impressão que as coisas estão acontecendo agora, mas voltando na história percebemos que já vivemos tudo isso há bastante tempo. Um desafio que temos é como manter essas questões em pauta permanentemente, especialmente pelas/os gestoras/es públicos. Não podemos só lembrar desses acontecimentos em determinados momentos, quando vem à tona de novo como uma urgência. E o Conselho de Psicologia sempre teve um papel muito importante de fomentar discussões em torno de ações de políticas públicas que deem conta disso." 
 
A abertura da Psicologia, saindo de um lugar tradicional, mais restrito à Clínica entre quatro paredes, para outros contextos é destacada por Vera. “A Clínica, um campo tão tradicional da Psicologia, se abriu para outros contextos que não só os consultórios privados.” Foi nesse contexto que a Gestão ComPosição se organizou. “Buscamos compor aquela gestão com pessoas que, de fato, tivessem muita identidade em relação à forma de discussão de temas que entendíamos ser importantes levar à frente. O nome ComPosição também tinha o sentido de ser uma plenária que assumia suas posições, então, era uma composição com posição, uma posição política muito definida e explícita de defesa das políticas públicas e dos direitos humanos.” A publicação “Entre garantia de direitos e práticas libertárias”, organizada a partir de um evento e lançada ao final dessa gestão, sintetizou esse propósito.
 
Foto 1: Posse da Gestão ComPosição em 2010
Foto 2: Manifestação contra Ato Médico
Foto 3: Projeto com o grupo teatral italiano Accademia della Follia
 
Vera Lucia Pasini | CRP 07/03826 
XIII Plenário | ComPosição | 2010 – 2013
 

 

Movimento “Vem Pra Rua” e a luta contra retrocessos

As manifestações de junho de 2013, com o movimento Vem Pra Rua, marcaram o início de um momento de insatisfação social. Foi nesse contexto que a Gestão Mobilização (2013-2016) assumiu o CRPRS. “Esse movimento todo foi tendo reflexos na nossa gestão. Passamos a promover orientações e reflexões sobre a interface da Psicologia com a política”, explica Cristiane Bens Pegoraro (CRP 07/18363). A Copa do Mundo no Brasil, a polarização política, o pedido de impeachment da presidenta Dilma Rousseff e os debates em torno da reforma política, as ocupações das escolas promovidas pelos movimentos estudantis, além de retrocessos nas conquistas da luta antimanicomial, foram temas que marcaram as discussões no CRPRS durante esses anos. "Havia uma desmobilização geral da categoria, um esvaziamento dos espaços de construção da profissão, motivando a Gestão Mobilização a convocar a categoria. Buscávamos uma aproximação maior dos profissionais com o Conselho, mostrando que esse é um espaço importante de participação, de luta e de suporte. Nossa gestão veio justamente para tentar promover essa mobilização."
 
A Gestão Mobilização enfrentou grandes retrocessos para o movimento da luta antimanicomial. “O CRPRS participou de ações pelo fechamento de instituições asilares, além de eventos e mobilizações em defesa da Reforma Psiquiátrica, firmando mais uma vez o compromisso da profissão com essas ações de desinstitucionalização. Fizemos um movimento para que as deliberações da quarta Conferência Nacional de Saúde Mental Intersetorial fossem consideradas na política de saúde mental aqui do estado. Além disso, participamos da Inspeção Nacional dos manicômios judiciários (2015), em uma articulação do CFP com a OAB. No RS realizamos a inspeção no IPF, em articulação com diversos conselhos regionais da área da saúde e OABRS. Uma marca importante foi a promoção do fortalecimento dos movimentos de luta antimanicomial, buscando, principalmente, o protagonismo das pessoas usuárias, o que culminou com a organização do Encontro Gaúcho dos Militantes da Reforma Psiquiátrica Antimanicomial.”
 
No ano de 2015, com a aprovação da Lei Brasileira de Inclusão, as pautas da acessibilidade ganharam evidência no Sistema Conselhos de Psicologia e também mobilizaram o CRPRS. Passamos a compor o Conselho Estadual dos Direitos da Pessoa com Deficiência (COEPEDE), um marco importante, atuando na organização da Conferência Estadual dos Direitos da PCD.
 
A pauta da despatologização das identidades trans e a publicação de uma Nota Técnica sobre o tema marcaram também a Gestão Mobilização. “O grande diferencial dessa Nota foi a construção coletiva. Na época, a Comissão de Direitos Humanos fez todo um movimento para chamar as pessoas trans, pessoas da universidade e construir uma Nota Técnica junto com quem sente os efeitos”, recorda Cristiane. 
 
Foi durante esse período que surgiu o Núcleo de Relações Raciais, em março de 2015, organização que originou a Comissão Permanente de Relações Étnico-Raciais, pautando o genocídio da juventude negra e o racismo nas práticas psicológicas. “O núcleo ampliou muito os espaços de discussões da Psicologia e do racismo. Lançou a campanha ‘O Racismo tem dessas coisas’, dando visibilidade a histórias reais de discriminação racial, convocando psicólogas/os a refletir sobre o racismo no processo de construção da subjetividade da população negra.”
 
A política de descentralização é estruturada e fortalecida com a criação da Comissão de Descentralização. No mesmo período, tem-se a criação do 0800 para atendimento de orientações técnicas de forma gratuita e da Ouvidoria como um canal de comunicação aberto a sugestões, elogios, críticas e reclamações. A gestão dedicou-se ainda à qualificação, acompanhamento e organização das representações do CRPRS nos espaços de controle social. 
 
Para celebrar os 40 anos do CRPRS, foi lançado o projeto “A força do diálogo em 40 mobilizações”, realizando eventos em diversas regiões do estado. “Foi um coletivo que conseguiu fazer construções de uma forma mais horizontal”, lembra. “Nossa gestão terminou com um baque que foi o Golpe à presidenta Dilma, anunciando os retrocessos que estariam por acontecer.”
 
Foto 1: Posse da Gestão Mobilização em 2013
Foto 2: Encontro Gaúcho dos Militantes da Reforma Psiquiátrica Antimanicomial
Foto 3: Projeto “A força do diálogo em 40 mobilizações” marcou os 40 anos do CRPRS
 
Cristiane Bens Pegoraro | CRP 07/18363 
XIV Plenário | Mobilização | 2013 – 2016
 

 

Psicologia na Educação

O cenário político pós-impeachment, o conflito entre os três Poderes e todas as reverberações nos anos posteriores marcam o contexto em que a Gestão Amplia Psi (2016-2019) assumiu o CRPRS. Havia, inclusive, uma ameaça à própria organização do Sistema Conselhos, uma proposta para deixar de ser uma autarquia federal. “Nós não tínhamos noção do impacto desses acontecimentos nos anos posteriores, do que estava se formando naquele momento. Tivemos desdobramentos com o desmonte de vários equipamentos do Estado. O Sistema Conselhos de Psicologia foi, naquele momento, um importante foco de resistência”, contextualiza Cleon dos Santos Cerezer (CRP 07/08591).
 
A política do SUAS seguia se estruturando e se fortalecendo. “Muitas regulamentações estavam sendo apropriadas naquele momento. Discutíamos sobre o fazer da Psicologia na política pública de assistência social. Trabalhamos com o subjetivo, com acolhimento, exercitando muito a escuta que não é só da clínica, mas de toda a subjetivação do ser humano.” Complementando essa atuação da Psicologia nas políticas públicas, vem a inserção das/os psicólogas/os na Educação, que culminou com a Lei 13.935/2019. Cleon relembra também da campanha “Sua escola, tem psicólogo?” que fazia uma provocação a todas as escolas da rede privada e pública.
 
Foto: Posse da Gestão Amplia Psi em 2016
 
Cleon dos Santos Cerezer | CRP 07/08591 
XV Plenário | Amplia Psi | 2016 – 2019
 

 

Proximidade com toda a categoria

A Gestão Amplia Psi buscou colocar em prática o discurso de proximidade com a categoria em todos os campos. Com isso, a própria Comissão de Psicoterapia, que há alguns anos não estava tão articulada, fortaleceu-se nessa perspectiva para o público e para o privado. Surgiu a campanha “O seu terapeuta é psicólogo?”, tendo em vista justamente a valorização profissional da Psicologia. 
 
“Também tivemos um investimento na Comissão de Orientação e Fiscalização, aumentando as fiscalizações, sempre focando na orientação, e trabalhando de forma integrada às demais Comissões do CRPRS. Buscávamos proximidade com toda a categoria, falando para todos e não somente para os pares. Assim também ampliamos a política de descentralização do Conselho. A criação dos Polos, objetivando uma aproximação maior com profissionais que estão geograficamente mais distantes, também foi uma importante realização desse período”, menciona Cleon ao citar alguns destaques da gestão que integrou.
 
Resumindo o propósito dessa gestão, o Encontro Gaúcho da Psicologia, em agosto de 2018, reuniu mais de 800 pessoas em um evento de três dias na Assembleia Legislativa do Estado e no Espaço Multipalco, em Porto Alegre, com conferências, mesas temáticas, feira de instituições, lançamento de livros e apresentação de trabalhos. O evento contou com conferências de Viviane Mosé, Djamila Ribeiro, João W. Nery e Luis Cláudio Figueiredo.
 
Foto: Encontro Gaúcho da Psicologia em 2018
 

 

A tecnologia aliada ao exercício profissional

A partir de 2018, as lives de orientação e elucidando dúvidas da categoria, passaram a ser uma importante forma de comunicação. 
 
Além disso, com a publicação da Resolução nº 11/2018, que regulamenta a prestação de serviços psicológicos realizados por meios de tecnologias da informação e da comunicação, ampliaram-se os atendimentos on-line, modalidade potencializada poucos anos depois com a pandemia da Covid-19.
 

 

A pandemia da Covid-19 e a defesa da vida

Em meio a um Governo Federal marcado pela necropolítica e pelo desmonte das políticas públicas, a Frente em Defesa da Psicologia se organiza no Brasil para contrapor grupos religiosos fundamentalistas que se articulavam buscando espaço no Sistema Conselhos. “O contexto político nacional era de domínio de um grupo absolutamente reacionário que promoveu a destruição da política social. Foi um período de ataque à saúde, aos direitos humanos e às liberdades. A Psicologia precisava seguir se colocando como uma profissão absolutamente intrincada com os direitos humanos e com as liberdades. E quando a gente achava que o pior já tinha acontecido, surge a pandemia”, lembra Ana Luiza de Souza Castro, que integrou a Frente em Defesa da Psicologia RS, eleita para a gestão de 2019 a 2022.
 
"Presidir o Conselho durante uma pandemia foi algo inimaginável. Ter que trabalhar com a angústia diária de proteção à vida das/os funcionárias/os, das/os conselheiras/os, da categoria que estava na linha de frente e da sociedade em geral. Não podíamos parar, mas qual era o limite? Depois de várias reuniões com Estado e Município, percebemos que não haveria máscaras de proteção para todas/os. Então, o Conselho decide adquirir essas máscaras e distribuir para as/os psicólogas/os da linha de frente."
 
Além dos equipamentos de proteção, o Conselho se empenhou na construção de orientações sobre o exercício profissional seguro, adotando medidas de biossegurança, e na defesa pela vacinação de psicólogas/os.
 
Orientar para o atendimento psicológico on-line de forma ética, segura e de qualidade também passou a ser prioridade do Sistema Conselhos de Psicologia. 
 
Foto 1: Visitas de inspeção nos Hospitais Psiquiátricos São Pedro e Colônia de Itapuã durante a pandemia da Covid-19 em 2020
Foto 2: Ato “Não ao genocídio! Vidas negras importam!” em 2020
 
Ana Luiza de Souza Castro | CRP 07/03718 
XVI Plenário | Frente em Defesa da Psicologia RS | 2019 – 2022
 

 

A pluriversidade no Sistema Conselhos

O ano de 2022 marca o início das ações afirmativas no Sistema Conselhos de Psicologia, garantindo vaga em todas as gestões para pessoas negras, indígenas, de povos e comunidades tradicionais, trans e com deficiência. “Nosso plenário inicia com 8 pessoas negras, uma indígena, um homem trans e duas pessoas com deficiência. Isso traz desafios importantes nos diferentes âmbitos que compõem a autarquia, seja nas nossas relações enquanto conselheiras/os, nas relações entre conselheiras/os e funcionárias/os, com a sociedade de um modo geral e, sobretudo, com a categoria, porque as pautas passam a ser operadas desde outras perspectivas, desde uma cosmopercepção que até então não transitava por aqui, era desconhecida e forja estranhamentos. Ao mesmo tempo, possibilita um percurso diferente, com muitas conquistas que são operadas, inclusive, desde uma pergunta disruptiva ouvida em nossa posse: o que virou esse Conselho?”, destaca Míriam.
 
Diante dessa provocação, a Gestão Frente em Defesa da Psicologia RS, em seu segundo mandato, conduz suas ações fortalecendo diferentes Psicologias, oportunizando espaços para corpos e sujeitos que, até então, não estavam inseridos no Sistema Conselhos. 
 
Eventos como o “Marco temporal não: nunca mais um Brasil e uma Psicologia sem nós” (julho de 2023) e “Mulheres Quilombolas e a Pluralidade de Existências” (agosto de 2024) entram para a história do CRPRS firmando o compromisso da Psicologia na transformação social. Outra iniciativa importante dessa gestão foi a Gira Psi, inspirada na Gira Poética, que colocou o Conselho a se movimentar pelo estado, utilizando a poesia como forma ética e estética de se relacionar e comunicar. “A Gira Psi é uma possibilidade de transitar pelos territórios do estado levando a autarquia e conversando com a categoria sobre esses diferentes temas. Promovemos a descentralização na medida em que nos movimentamos pelo território. Essa descentralização não é somente territorial, dos espaços geográficos, mas de conceitos, de pensamentos.”
 
Outra marca da gestão de 2022-2024 foi a atuação diante das emergências e desastres resultantes dos efeitos climáticos no Rio Grande do Sul, com enchentes, inundações e deslizamentos. “O CRPRS precisou se organizar rapidamente e contribuir com orientações, com respostas rápidas para a sociedade. Além disso, também foi preciso dialogar com o Poder Público para pensar esse processo de cuidado das cidades, da sociedade e da categoria”, lembra Míriam.
 
Foto 1: Posse da Gestão Frente em Defesa da Psicologia RS em 2022
Foto 2: Evento “Marco temporal não: nunca mais um Brasil e uma Psicologia sem nós” em 2023
Foto 3: Evento “Mulheres Quilombolas e a Pluralidade de Existências” em 2024
Foto 4: Projeto Gira Psi