PSICOLOGIA E PESQUISA


Este artigo tem como objetivo analisar e problematizar os sentidos atribuídos
por profissionais e usuários da Rede de Atenção Psicossocial (Raps) de Porto Alegre/RS às
práticas de acolhimento. Inscrito em um regime de alteridade, o acolhimento se transforma
em um encontro dialógico, sempre polifásico e marcado por tensões. 
 

 

O conceito de acolhimento em ato:
reflexões a partir dos encontros
com usuários e profissionais da rede


O acolhimento pode ser considerado um dispositivo de construção do comum, concretizado nos encontros cotidianos entre profissionais e usuários. Considera-se urgente o debate sobre as práticas de acolhimento a pessoas que usam drogas, uma vez que se percebe o avanço de práticas individualizadoras nesse campo, como a necessidade cada vez maior de internações compulsórias dos usuários. Entendendo que o acolhimento acontece no encontro, inscrito em fluxo de afetos e de saberes singulares (profissionais e usuários), este artigo tem como objetivo analisar e problematizar os sentidos atribuídos por profissionais e usuários da Rede de Atenção Psicossocial de Porto Alegre/RS às práticas de acolhimento. O presente artigo é um recorte da Tese de Doutorado intitulada “Narrativas do Desassossego: do re-en-colhimento às práticas de acolhimento aos usuários de drogas na Rede de Atenção Psicossocial de Porto Alegre/RS”. 
 
Adotaram-se como estratégias metodológicas a observação participante, em três contextos da Rede de Atenção Psicossocial (Raps) da cidade de Porto Alegre/RS (Área Técnica de Saúde Mental, CAPS AD e Consultório na Rua – CnR), o diário de campo, as entrevistas narrativas (com usuários e profissionais) e os grupos de discussão com os profissionais. A pesquisa ocorreu entre 31 de março de 2014 e 2 de junho de 2015. Nesse período, foram concluídas 298 horas de observação participante em 86 imersões no campo de estudo. Além das observações, foram realizados três grupos de discussão e 34 entrevistas narrativas com usuários e profissionais dos serviços.
 
Com as equipes da Área Técnica de Saúde Mental, do CAPS AD, do CnR e demais profissionais RAPS que participaram dos Fóruns AD, de um modo geral, foi possível aprender e aprofundar as noções e práticas de acolhimento. Acredita-se que este trabalho traz novos elementos para se pensar no acolhimento como um encontro de saberes entre profissionais e usuários, saberes que vão se transformando no encontro com o outro. Neste sentido, o acolhimento possibilita (ou torna-se possível através de) um encontro de saberes, entre profissionais e profissionais-gestores, entre profissionais e usuários, entre profissionais-gestores e usuários.
 
 
Inscrito em um regime de alteridade e de afetabilidade, o acolhimento se transforma em um encontro dialógico, sempre polifásico e marcado por tensões. Além disso, propõe-se que, como efeito, o acolhimento é produto e produtor de uma desestabilização da noção naturalizada de que a rede é apenas a distribuição e a implementação de pontos/dispositivos de atenção em um determinado território. O acolhimento como um efeito de ‘sentir-se acolhido’ também provoca os mais variados sentimentos: alegria, confiança, tristeza, cansaço, impotência. Nesse fluxo de afetos, o acolhimento, portanto, é uma conquista, na árdua tarefa de construção do comum nos serviços de saúde e nos encontros. 
 
Quando se superam as práticas de colhimento, encolhimento e recolhimento, pautadas no fracasso individual como tecnologia de subjetivação, passa-se a refletir e propor práticas de acolhimento a pessoas que usam drogas. Acolher essa pessoa, tendo como pressuposto a necessidade de construção do comum, significa, portanto, subverter a lógica da individualização do fracasso, culpando o sujeito pela doença que adquiriu apenas por hábitos ou predisposições individuais (colhimento); desnaturalizar as representações e os saberes que reduzem o sujeito à doença, que reduzem a dependência à química e a intervenções que se propõem a curar a doença, e não tratar do sujeito (encolhimento); e desconstruir a noção amplamente difundida de que é o usuário de crack ou o morador de rua que empobrece e desvaloriza determinados espaços públicos, de que essas pessoas estão lá porque já eram espaços abandonados pelo Estado e que não é possível homogeneizar esse grupo, já que cada pessoa e cada subgrupo, nas ruas, estabelecem relações singulares com as drogas (recolhimento). 
 
O acolhimento como um efeito de ‘sentir-se acolhido’ também provoca os mais variados sentimentos:
alegria, confiança, tristeza, cansaço, impotência. Nesse fluxo de afetos, o acolhimento, portanto,
é uma conquista, na árdua tarefa de construção do comum nos serviços de saúde e nos encontros. 
 

MOISES ROMANINI
Doutor em Psicologia Social e Institucional (PPGPSI-UFRGS)
Professor dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Psicologia da UNISC
Coordenador do Curso de Psicologia da UNISC Montenegro
 
Artigo original publicado na revista Saúde debate, volume 41, número 113, abril – junho de 2017.