REPORTAGEM PRINCIPAL


Projetos que tentam atrelar as psicoterapias e a psicanálise a interesses políticos
e econômicos existem desde os anos de 1980, mas nunca prosperaram. Onda
conservadora ameaça mais uma vez a liberdade do exercício profissional, com projetos
que oferecem risco ao caráter leigo da análise.
 

A quem interessa regulamentar as psicoterapias?

 
O cerco é antigo: desde 1980, com o projeto de lei (PL) 2.726, de autoria do então deputado federal Salvador Julianelli, que as tentativas de regular o ofício de psicólogas/os das psicoterapias – entre elas a Psicanálise – avançam no Congresso, contemplando os interesses mais diversos, desde econômicos e profissionais até políticos. Mas as iniciativas nunca prosperaram: a legislação atual não considera a Psicoterapia uma atividade exclusiva a graduados, tanto em Psicologia quanto em Medicina.
 
Mas os projetos (veja quadro na página 11) continuam tramitando e, segundo especialistas ouvidos pela reportagem da revista Entrelinhas, há risco concreto de que alguma legislação restritiva ao exercício da Psicoterapia prospere. “Há um desejo latente de domínio, de supremacia, de fazer subalternos. É um momento delicado”, avalia a psicanalista Denise Hausen, professora aposentada da PUCRS e doutora em Psicologia.
 
Essa efervescência tem como pano de fundo um conflito entre profissionais da área da saúde, que reivindicam prioridade na prática psicanalítica. De fato, a lei federal 4.119, de 1962 e que regulamentou o exercício da profissão de psicóloga/o, “reservou” à categoria a exclusividade no uso de “métodos e técnicas psicológicas”. Mas isso não inclui muitas das psicoterapias agrupadas nos campos dinâmico-interpessoais, experienciais-humanistas, cognitivo-comportamentais e sistêmico-construtivistas, e nem a Psicanálise, que seguem sendo aplicadas também por profissionais de outras áreas de formação.
 


 
Atualmente, o projeto de lei do Senado (PLS) 101/2018, de autoria de Telmário Mota (PTB/RR), é o que está mais próximo de ser votado. Trata-se de uma versão modificada do PLS 147/2017, do mesmo senador (já arquivado), que extrai, das inúmeras terapias reconhecidas, a prática da Psicanálise visando à sua regulamentação. O Movimento Articulação, um coletivo das entidades psicanalíticas brasileiras em defesa da prática leiga conceituada por Freud, pretende se reunir com o relator do projeto para apresentar as justificativas pela não regulamentação.
 
“Os motivos que levam a formulação de tais projetos são múltiplos, desde econômicos, com a criação de cursos acadêmicos de formação, inclusive na modalidade a distância, até pretensões políticas, da bancada evangélica, visando enquadrar uma atividade leiga a seus interesses ideológicos e buscando retirar o caráter de autonomia que caracteriza a prática psicoterapêutica”, analisa a psicóloga Bárbara Conte, doutora em Psicanálise pela Universidad Autônoma de Madrid (Espanha).
 
Um dos maiores patrocinadores desses projetos é a Sociedade Psicanalítica Ortodoxa do Brasil (SPOB), com sede em Niterói (RJ). A Sociedade, de inclinação evangélica, já diplomou cerca de 3 mil pessoas e teve problemas legais, estando impedida pela Justiça Federal de oferecer cursos de graduação e de pós-graduação na área desde 2012. Na propaganda da instituição, o tom é francamente comercial: “venha ser um psicanalista, não perca mais tempo! Os novos alunos que se inscreverem nessa turma vão participar da promoção de descontos na mensalidade!”.
 

“É VERDADE QUE UMA REGULAMENTAÇÃO FORMAL AJUDA UM PROTEGER UMA SOCIEDADE DE MAUS PROFISSIONAIS, MAS TAMBÉM É VEREDADE QUE PODE SER DANINHA SE PROPICIAR UMA CRIAÇÃO DE MONOPÓLIOS E RESERVAS DE MERCADO. O CUIDADO COM O EXERCÍCIO PROFISSIONAL É IMPORTANTE, MAS ARRISCADO ”

Denise Hausen

Liberdade x tutela
 
O projeto do senador Telmário Miranda, que prevê formação acadêmica para exercer a atividade de psicanalista, cai como uma luva nas pretensões empresariais da SPOB. Além da graduação, o projeto prevê que a fiscalização do exercício profissional caberá ao Ministério do Trabalho – e não mais às sociedades psicanalíticas que atuam no Brasil, responsáveis pela formação atual, e nem aos conselhos profissionais da Psicologia e da Medicina. A proposta está em análise na Comissão de Assuntos Sociais do Senado e, se aprovada no colegiado, segue diretamente para a Câmara dos Deputados – a menos que haja um pedido formal de votação em plenário. Na consulta pública realizada até junho, a rejeição ao projeto ficou na proporção de nove votos para cada dez.
 
“A Psicanálise não tem vocação acadêmica, nunca teve. O psicanalista se forma no divã, na sua própria análise. Não tem curso, não tem academia, a formação não pode obedecer a uma ordem cronológica, não tem como estabelecer um prazo porque depende da dinâmica pessoal. Quem está interessado nessa regulamentação não são os psicanalistas, pelo contrário”, diz o psicólogo Nauro Mittmann, conselheiro do CRPRS e ele próprio em formação psicanalítica pela Sigmund Freud Associação. 
 




Ao lado da análise pessoal, Nauro Mittmann destaca que o tripé de formação se completa com os seminários de estudo e formação, sem caráter acadêmico, e com a supervisão de uma/um profissional reconhecida/o.
 
Nauro Mittmann também problematiza o papel do Estado e das universidades nessas propostas de regulação, ao criticar a excessiva legitimação dessas instituições no processo. Para ele, quem “nomeia” uma/um psicanalista é a sociedade – respaldada pelas instituições formadoras. “Se a Psicanálise é leiga, como um diploma poderá dizer quem pode ou não pode exercer a atividade? É complicado e problemático, a meu ver, transferir esse poder ao Estado ou às instituições de ensino”, argumenta.   
 
O projeto Julianelli, retirado de cena pelo próprio autor da proposta, é considerada a primeira tentativa de regulamentação das psicoterapias. Segundo Bárbara Conte, o projeto tinha como meta colocar profissionais da saúde, entre eles psicólogos, nutricionistas e enfermeiros, sob a supervisão direta de médicos. No artigo 57, o projeto tornava privativa dos médicos “a utilização da psicoterapia em psicopatologia”. No artigo 50, previa que os médicos podiam “prescrever ou delegar” atos a serem executados por outros profissionais de saúde.
 
Integrante, desde 2000, do movimento Articulação, Bárbara vê com preocupação o crescimento das propostas de cerceamento das atividades psicoterápicas. “Disparamos o grupo com um manifesto em que defendemos o exercício livre da Psicanálise, atribuindo às instituições psicanalíticas a responsabilidade social de formar profissionais competentes, conferir-lhes autonomia para o exercício da função e responsabilizá-los quanto à ética de seus atos. Esse documento se manifesta claramente contrário à regulamentação, defendendo os preceitos da análise leiga”, lembra.
 
Também crítica de eventuais regulamentações, embora reconheça que o debate é importante para “politizar” a categoria, a psicóloga Denise Hausen defende sua posição afirmando que a liberdade precisa prevalecer sobre a tutela. “É verdade que uma regulamentação formal ajuda a proteger a sociedade de maus profissionais, mas também é verdade que pode ser daninha se propiciar a criação de monopólios e reservas de mercado. O cuidado com o exercício profissional é importante, mas arriscado”, pondera a especialista. E ela usa justamente a liberdade democrática como metáfora para seu ponto de vista: “não podemos aderir à licenciosidade, mas pressupostos restritivos sempre podem gerar ditaduras. É preciso estar constantemente vigilante contra essa tentação”.
 

Reserva de mercado?
 
Por outro lado, o debate sobre a formação acadêmica em Psicologia para as práticas psicoterápicas também alimenta as justificativas pela regulamentação. Em outubro de 2017 foi protocolada no Senado uma sugestão de ideia legislativa para tornar o exercício da Psicoterapia como atividade exclusiva de psicólogas/os. A sugestão foi apresentada pelo psicólogo Derek Kupski Gomes, de Ponta Grossa (PR), e recebeu mais de 21 mil apoios na página das proposições eletrônicas. Pode, portanto, virar um projeto de lei.
 
A psicóloga Lisiane Bizarro, doutora em Psicologia pelo King’s College, de Londres, lembra que algumas terapias baseadas em princípios psicológicos são melhores do que outras. “A ciência psicológica produz conhecimento constante sobre as formas, novas ou não, de Psicoterapia e sua eficácia. Os psicoterapeutas, por isso, têm de reconhecer que uma evidência real é melhor do que uma opinião quando se trata de produzir a mudança desejada pelos pacientes. Por essa razão, a formação profissional é importante para garantir que nenhum dano seja decorrente da Psicoterapia”, defende.
 
Para Lisiane, a formação em Psicologia traria vantagens ao psicoterapeuta. “A principal é que a Psicoterapia não é restrita a doenças mentais, como muitas vezes entende a Psiquiatria, mas aplica-se a uma gama de situações em diferentes ambientes ao longo do ciclo vital. Pela formação ampla, profissionais da Psicologia têm mais condições de não considerar o problema do cliente como 
necessariamente uma doença, mas compreendê-lo nas suas idiossincrasias”, explica.
 
A formação mais ampla, segundo ela, também permite que o psicoterapeuta psicólogo não prejudique o paciente, já que tem uma formação acadêmica interdisciplinar e é capaz de identificar problemas fora da sua competência, além de indicar o acompanhamento adequado.
 
 
Histórico de projetos envolvendo a psicoterapias

PL 3.944 / 2000, de Silva Eber (PDT / RJ) - Regulamenta profissão de Psicanalista. Arquivado em 2003.
PL 2.347 / 2003, de Simão Sessim (PP / RJ) - Regulamenta a profissão de Psicanalista. Retirado pelo autor em 2004.
PLS 174/2017, de Tel. Mota (PTB / RR) - Regulamentação de uma profissão de naturista, incluindo Psicanálise e
Psicopedagogia entre suas especialidades.
Em tramitação
PLS 101/2018, de Telmário Mota (PTB / RR) - Regulamenta a profissão de Psicanalista. Em tramitação.