ENTREVISTA
A/o psicóloga/o pode produzir saúde ou
assinar a criminalização e o afastamento
Psicóloga formada pela PUCRS com residência em Saúde Comunitária com mestrado em Educação pela UFRGS e psicanalista do Instituto da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre (SBPPA), Sandra Maria Sales Fagundes tornou-se uma referência no estado quando o assunto é Políticas Públicas na Saúde e na Saúde Mental. Foi secretária estadual no governo Tarso Genro e presidente do Conselho Regional de Psicologia, em 1991 e 1992, acumulando uma vasta experiência em gestão, consultoria técnica e docência, além de ser militante dos Movimentos Sanitário e da Luta Antimanicomial. Nesta entrevista, Sandra analisa o atual cenário das Políticas Públicas voltadas para a área da Saúde Mental no Brasil e explica de que forma as/os profissionais de Psicologia podem contribuir para modificar esse quadro.
Como surgiram as Políticas Públicas na área da Saúde Mental no Brasil?
A expressão Política Pública foi criada no final do século XX, período no qual o cenário brasileiro era de democratização com participação social e com afirmação de liberdades. Havia um ambiente de esperança e aposta na sociedade por uma mudança. As políticas públicas específicas de Saúde e de Saúde Mental estavam alicerçadas em movimentos sociais, em coletivos universitários, nas/os trabalhadoras/es, usuárias/os e familiares. Esses movimentos deram sustentação para o Sistema Único de Saúde (SUS) e para a Reforma Psiquiátrica no Brasil, ancorados nos Direitos Humanos e, especificamente, na Saúde Mental, no direito do cuidado em liberdade fora dos hospitais psiquiátricos, considerados nitidamente excludentes. A força das/os usuárias/os, o protagonismo das mulheres e a multiprofissionalidade são marcas da Reforma Psiquiátrica Brasileira, reconhecidas internacionalmente.
Quais foram as principais mudanças nesse campo nos últimos anos?
A questão do álcool e drogas surge com um apelo de julgamento moral da sociedade, sendo relacionado à violência e ao crime. Foi criada artificialmente uma dimensão de epidemia na qual a sociedade estava tomada pelo crack. Desse modo, passa a ocorrer uma disputa na formulação e execução das políticas públicas entre práticas higienistas e de cuidado em liberdade, em especial, a redução de danos. A partir de 2010, forças conservadoras avançaram no tecido social com práticas mais violentas e criminalizadoras dirigidas aos movimentos sociais, aos ativistas dos direitos humanos, jovens negros, mulheres, indígenas, LGBTTIs e, particularmente, em relação às pessoas usuárias de drogas. Foi se instituindo uma cultura de medo e de desumanização sedimentadora da necropolítica, que extermina os descartáveis não mais humanos. Em 2016, pós-golpe institucional, as referidas forças conservadoras hegemonizam o governo federal e, no que se refere à Reforma Psiquiátrica brasileira, os hospitais psiquiátricos são fortalecidos com o direcionamento de recursos financeiros do SUS. Recorrem a um discurso tecnicista, supostamente científico para trabalhar o imaginário da população de que a doença mental, assim como qualquer doença, deve ser tratada em serviços especializados, os quais teriam mais expertise e mais capacidade de cuidado.
Como você avalia o atual cenário?
Vivemos um retrocesso violento. A Lei de Políticas de Drogas retirou a Redução de Danos como uma das prioridades. As forças hoje que apostam no retrocesso, na perda de direitos, na criminalização, contam com o apoio do Executivo, profissões e até de departamentos de universidades, além de parte da população. Hoje pode-se dizer que as pessoas preferem perder o direito da liberdade, do cuidado, em troca de uma segurança contra a violência. As/os usuárias/os estão sendo retiradas/os de circulação da sociedade porque causam medo, estão presos no presídio, estão isolados em comunidades terapêuticas ou em hospitais psiquiátricos. Outro aspecto que é muito grave é a possibilidade de autorização da internação involuntária por qualquer agente público. Assim, um policial ou um profissional assustado, que não sabe como abordar as pessoas com problemas com drogas, que fica tomado por cenas de violência, tende a autorizar internação involuntária. São políticas geradoras de violência na sociedade junto às famílias, junto ao serviço em relação à/ao usuária/o. Felizmente há resistência, muitas organizações de usuárias/os e trabalhadoras/es no Brasil têm resistido a esse modelo e se reinventado. Além de termos o apoio de algumas entidades como os Conselhos Federal e Regionais de Psicologia, identificados com os Direitos Humanos.
De que forma as/os profissionais da Psicologia podem contribuir para modificar essa situação?
Considero que as/os psicólogas/os são essenciais nessa resistência, nessa reinvenção de cuidado, porque estão presentes no cotidiano dos serviços, de Saúde, Assistência Social e, nesses lugares, devem se posicionar. Há uma disputa ética, política e técnica. Há profissionais que defendem a comunidade terapêutica sem uma avaliação crítica. Há psicólogas/os que elaboram laudos atestando a priori que mães que vivem nas ruas e são dependentes de drogas não têm condições de ficar com os seus filhos. Há também muitas/os psicólogas/os com outra práxis e apostam na potência da vida. São colegas que afirmam a possibilidade de uma mãe com uso problemático de drogas, manter o convívio com o filho, desde que ela seja amparada, protegida e cuidada. A/O psicóloga/o deve usar sua autoridade profissional para contrapor uma internação involuntária e conseguir mobilizar equipes, trabalhar com o juiz ou com a família nessa direção. A/O profissional da Psicologia pode produzir saúde ou assinar a criminalização e o afastamento da mãe de seu filho recém-nascido. A/O psicóloga/o também está presente na formulação de políticas, são gestoras/es e podem contribuir nas diversas políticas, ações e movimentos sociais.
Em sua formação, como ocorreu essa aproximação com a área da Saúde Mental?
Fiz estágio no Centro de Saúde-Escola São José do Murialdo, que produzia um trabalho junto com a comunidade. Ali era um local onde podia integrar o técnico e o político. Trabalhávamos com multidisciplinaridade, com o cuidado nas 24 horas do dia, nos sete dias da semana e com a formulação de políticas. Foi nessa experiência que me vinculei à Saúde Pública. Após a Residência, fui contratada como psicóloga na Secretaria Estadual de Saúde, onde exerci a gestão de Políticas Públicas, participei das discussões e formulações de sistemas de saúde em especial, o Sistema Único de Saúde (SUS). Em 1987, durante o primeiro governo democrático eleito aqui no estado, tive a oportunidade de coordenar a Política de Saúde Mental. De 1987 até 1991, começamos um trabalho de Reforma Psiquiátrica, com a criação de serviços municipais e Rede de Cuidados em liberdade. Foram serviços e práticas instituintes, predecessores dos CAPS (Centros de Atenção Psicossocial). Foi um processo muito apaixonante. Nessa trajetória, as necessidades das/os usuárias/os sempre estiveram presentes e considero importante manter viva a indagação: nossas práticas fazem diferença para a população atendida?