DICAS CULTURAIS
Filme
Coringa: uma breve contribuição
para uma análise crítica
Alerta de spoiler! Lançado em 2019, estrelado por Joaquin Phoenix e dirigido por Todd Phillips, Coringa traz uma narrativa que mistura o sofrimento psíquico, através da história de vida de Arthur Fleck, a uma análise social. Por um lado, vemos a miséria, cortes de verbas, aumento da criminalidade, classe trabalhadora negligenciada e um promissor empresário, Thomas Wayne, que se propõe a ser o salvador de Gotham City. Já por outro, acompanhamos a vida de Arthur e sua mãe, dois trabalhadores da periferia, ambos com histórico de sofrimento psiquíco e vastas internações psiquiátricas.
O filme começa com o 18º dia da greve dos trabalhadores lixeiros, com toneladas de lixo e ratos espalhados pela cidade, a população revoltada com essa situação, com a miséria e a exploração a que são submetidas diariamente, e os “ditos cidadãos de bem” apavorados com o caos que se instaurou em toda a cidade. Em seguida passamos a conhecer a vida de Arthur, que trabalha como palhaço para uma agência (apesar de sempre ter tido o desejo de ser comediante), cuida de sua mãe e frequenta semanalmente o serviço social, para fazer acompanhamento de saúde mental. Entretanto, a prefeitura decide fechar o serviço de Assistência Social para reduzir gastos, fazendo com que Arthur fique sem acompanhamento e sem o tratamento medicamentoso. Não demora muito para que o desemprego também faça parte da vida do personagem.
Você deve estar lendo e se perguntando: “mas onde a Psicologia e a saúde mental entram nisso?”. Precisamos partir do pressuposto de que vivemos em sociedade. E que essa sociedade na qual vivemos é regida pelo modo de produção Capitalista, no qual uma maioria (a classe trabalhadora) é explorada para garantir a existência do sistema, por uma minoria (a burguesia, classe dominante) que visa apenas o lucro. E, se existe uma classe trabalhadora que é responsável pela reprodução da vida, mas que paradoxalmente não possui acesso aos seus direitos mais básicos, como a saúde, existe então uma grande parcela da população que adoece diariamente por conta desse mesmo sistema. Dessa forma, não podemos, ao fazer uma análise psicológica, simplesmente ignorar aspectos sociais.
E Coringa consegue, magistralmente, evidenciar o sofrimento psíquico vivido por Arthur Fleck, relacionando-o com a sua inserção na sociedade. A constituição psíquica do personagem se deu atravessada por uma infância marcada por maus tratos, com uma mãe também adoecida pelo sistema, com a ausência da figura paterna e de cuidado. Pela necessidade de trabalhar em um emprego extremamente precarizado para poder sobreviver e não ter a possibilidade de trabalhar com o que desejava. Arthur possuía um histórico de internações psiquiátricas em decorrência de sofrimento psíquico mal tratado por meio de um sistema de saúde falho e precarizado, da mesma forma que a saúde mental da mãe também foi negligenciada pelo sistema.
É a partir do momento em que Arthur está sem qualquer atendimento para tratar a sua doença, desempregado e sem mais conseguir tolerar as violências a que foi e continua sendo submetido socialmente, que ele reage também de forma violenta ao assassinar três homens jovens, que estavam assediando uma mulher no metrô. As mortes, tendo ocorrido da forma que ocorreram, potencializam todo o ódio e a revolta que a população já vinha sentindo, resultando em uma idolatria do personagem Coringa, que matou três pessoas que representavam uma classe dominante, pois eram funcionários da bolsa de valores, que gerencia o sistema financeiro. Dessa forma, há uma associação de todas as mazelas em que a sociedade se encontrava com o ódio ao sistema dominante. Contrariamente a essa admiração, está a elite com os seus “cidadãos de bem”, que é muito bem representada através da fala de Thomas Wayne em uma entrevista, que diz que “o problema dessas pessoas (fazendo referência ao Coringa e seus seguidores) que fazem esse tipo de coisa é que não suportam as pessoas bem-sucedidas como nós, já que eles continuam sendo meros palhaços”.
E é justamente através dessas diferentes reações às atitudes do Coringa que podemos analisar o quanto o Capitalismo é capaz de produzir o caos, a desordem, a morte e a barbárie, na medida em que existe para proteger a propriedade privada e o lucro e não para defender a vida humana. A falta de políticas públicas estatais – que garantam o acesso à saúde, à moradia, ao emprego – foi capaz de gerar e potencializar a doença psíquica do personagem principal e, como o próprio Coringa diz ao longo do filme: “O sistema decide tudo. O que está certo e errado”.
Roberta da Silva Gomes - Conselheira CRPRS
Filme
Sobressalto. Arrebatamento
Sufoco. Mal-estar.
Parasita inunda-nos por afetos e sensações que, ao menos num primeiro momento, colocam em suspensão qualquer possibilidade de representação. É preciso um tempo para conseguir falar sobre o filme.
A história reúne duas famílias a um só tempo tão semelhantes, ainda que sobremaneira distintas. As marcas da desigualdade social transmitidas a
partir de uma perspectiva intimista colocam todos nós em cena, de corpo e alma. É impossível não se identificar e sentir na pele (fétida ou de pêssego) ora o sofrimento de quem vive nos subsolos da exclusão, ora o conforto de quem habita a superfície – superficial.
A injustiça social que é, ao mesmo tempo, condição e efeito do sistema capitalista no qual vivemos é sutil e grosseiramente exibida na tela. A distância que separa ambas as realidades parece grande, porém, uma vez “cruzada a linha”, estranho e familiar se (com)fundem e somos convocados a tomar posição.
Não fosse o toque de comicidade e de ação que a história ganha em alguns momentos, assistir a Parasita seria intolerável. Os elementos são diversos, os personagens complexos, muitos detalhes seguem orbitando no pensamento; mas, uma interrogante fica: afinal, quem são/somos os parasitas?
Alice Faria – Conselheira CRPRS
Literatura
Ideias para adiar o fim do mundo
O livro Ideias para adiar o fim do mundo, de Ailton Krenak, expõe como a crise socioambiental guarda relação com a noção de que há uma humanidade universal, separada da natureza e que se apropria dela como recurso, e não como forma de vida. Tal noção exclui os indígenas e desconstitui suas formas de organização com base na ideia de que não contribuem para o progresso, cujo projeto passa pela exploração da natureza à exaustão. Krenak aponta aos processos de homogeneização das sociedades, implicando na ruptura com referências ancestrais, na perda da diversidade de cosmovisões e na substituição da experiência pelo consumo. Agora, o progresso dessa humanidade nos leva à iminência de a Terra não suportar a nossa demanda, e por isso Krenak nos provoca: que sociedade estamos deixando empacotadas para as próximas gerações?
Cristina Schwarz – conselheira CRPRS
Literatura
Um defeito de cor
Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves, é leitura de que não pode se furtar quem queira conhecer nossa história profunda, feita de sangue, suor e lutas de negros/as arrancados/as de África e escravizados/as no Brasil. O romance percorre 100 anos de História para contar a saga de Luisa Mahin, negra africana liberta, conhecida por sua participação na revolta dos Malês e mãe do abolicionista Luiz Gama. Não há muitos dados a seu respeito, mas a autora constrói seu enredo e as centenas de personagens do livro calcada em vasta pesquisa histórica, em documentos da época. É obra volumosa, mas de se ler num fôlego só, arrastados que somos, por sua escrita vivaz, à Bahia do século XIX. Não se sai ileso desse mergulho no tempo, com que se faz visível, na superfície da pele, o racismo que nos habita.
Analice Palombini – Conselheira CRPRS