ENTREVISTA


Argentino de nascimento, o psicólogo e psicanalista Alfredo Jerusalinsky já viveu mais
tempo no Brasil do que na sua terra natal. Exilado da sangrenta ditadura iniciada em 1976 com uma
deposição de Isabel Perón, Jerusalinsky desembarcou em Porto Alegre há um ano e teve uma
carreira de dicção à popularização das ideias de Lacan e o atendimento de crianças e adolescentes - sua
especialidade frente ao Centro Lydia Coriat. Doutor em Psicologia da Educação e Desenvolvimento Humano,
membro da Associação Lacaniana Internacional e da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Appoa),
Jerusalinsky, fala sobre os docentes do exilar-se no Brasil, das angústias dos adolescentes de hoje, do
empobrecimento em andamento da linguagem e o que chama de “sociedade de turistas”. Além disso, é claro, de Lacan.
 

Estamos criando uma
sociedade de turistas

 

Por que o senhor escolheu o Brasil?

Vim para o Brasil, no início de 1977, por razões políticas. E, embora já tenha havido bons amigos e colegas, que foram por etapas de formação profissional em Buenos Aires, e em meados de 1975 tenha estado no Brasil para proferir os seminários em São Paulo e em Porto Alegre, uma migração para a Venezuela. Mas, enquanto isso, foi embora na Argentina. Além disso, uma Venezuela vive uma fase de grande instabilidade social, como agora. A agenda para manutenção do meu exercício em Porto Alegre foi criada por relações de amizade que foram construídas aqui. E, naturalmente, pela proximidade com Buenos Aires.
 

Mas aqui também se vivia numa ditadura.

Que estava no fim, havia uma transição democrática em curso. Outras duas coisas foram decisivas para mim: a repressão no Brasil era muito mais branda que na Argentina e aqui houve mais possibilidades de trabalho. Alguns colegas se solidarizaram com a situação de apuro em que eu estava vivendo e me abriram espaços profissionais.
 

Que apuros foram esses?

De ordem política. A era do movimento militante contra uma ditadura do meu país, comandada pelo general Jorge Rafael Videla (entre 1976 e 1981), e um professor de crítica em relação ao sistema político. Em exercício foi demitido da Universidade de Buenos Aires, na mesma época professor assistente. Eu estava em plena formação psicanalítica, tinha 33 anos e era coligada simplesmente por ser financiada pelo regime. Antes que me ligue, saí do país. Fui recebeu aqui pela família de Paulo Brandão, psicanalista do Círculo Psicanalítico Brasileiro.
 

Que ambiente o senhor achou aqui?

A Sociedade de Psicanálise de Porto Alegre, que era representante da International Psychoanalitycal Association (IPA), tinha uma formação totalmente kleiniana e reservava seus lugares de aspirantes a psicanalista a médicos e, especialmente, a médicos formados em Psiquiatria. Isso fazia parte de um processo de medicalização da Psicanálise, que se estendeu desde a morte de Freud (1939) até cerca de início dos anos de 1970. Trouxe, como consequência, que a diversidade discursiva que a Psicanálise acolheu, como disciplina de escuta dos discursos sociais e suas consequências sintomáticas, encolheu e empobreceu, encarcerando a atividade psicanalítica no consultório. Textos de Freud, como “Psicologia das massas e análise do eu” (1921) e “O futuro de uma ilusão” (1927), eram considerados secundários desde o ponto de vista da posição medicalista. Curiosamente Melanie Klein não era médica, mas a sua teoria, na medida em que falava de um sujeito originário, ou seja, inato, se conjugava de modo mais cômodo com essa posição medicalista. Lacan inaugura, principalmente a partir de 1946 no artigo “Formulações sobre a causalidade psíquica”, um debate contra esse positivismo. Ele não só abre espaços, mas se esmera também em formalizar de modo rigoroso essa proposta em sua obra posterior.
 

Lacan, então, era pouco conhecido no Brasil.

A primeira coisa que me ocorreu fazer em Porto Alegre, já que cheguei sem livros, como um bom exilado, foi ver nas livrarias quais textos de Lacan poderia encontrar aqui. Então me olharam com curiosidade e espanto e perguntaram: quem é Lacan? Estávamos em 1977 e há pelo menos duas décadas ele já merecia atenção. Encontrei então uma tradução do famoso “Seminário do Elefante” (“Seminário 1”, 1953-1954), feita pelo colega Jacques Laberge, e a partir daí abrimos grupos de estudo relacionando Freud ao ângulo de leitura proposto por Lacan, que era o valor do significante como determinante do sujeito e de sua condição estrutural e sintomática. Isso abriu um tremendo espaço. Ao longo desses primeiros dez anos formamos uma extensa turma que debatia as questões clínicas, as questões psicossociais, o estatuto dos sintomas não somente como expressão individual mas da interseção entre o individual e o coletivo.
 

E depois?

A partir de 1981 ou 1982, passamos a organizar grupos de estudantes curiosos sobre os textos da Psicologia e da Psicanálise, estudantes de várias áreas das ciências humanas e com uma mentalidade muito progressista. Era o período em que a ditadura brasileira estava sendo derrotada, o período em que a discussão pelas Diretas Já ganhava as ruas. Isso trouxe como consequência uma enorme abertura para a Psicanálise, já que ela é incompatível com os sistemas autoritários.
 

Pode explicar melhor isso?

A chave é termos percebido que o saber, o conhecimento, não está armazenado no nosso sistema genético, mas na linguagem, ou seja, num sistema externo a nosso corpo. Então, o saber não se transmite geneticamente, mas pelo sistema de discursos que formam a cultura. E também porque grande parte do saber depende de estruturas inconscientes, que sejam capazes de decifrar o que está armazenado coletivamente. Essas estruturas não são inatas, alguém precisa imprimi-las em nós. E nessa impressão sempre há falhas, com as quais nós padecemos. A Psicanálise se encarrega de tornar suportáveis essas falhas e corrigi-las até um ponto em que não sejam um obstáculo à decodificação desse saber, para que encontremos formas de nos representar no discurso social. Se encontramos essas formas, podemos também enriquecer o discurso social. E criticá-lo. Por isso a Psicanálise é incompatível com o totalitarismo: ele se esmera em fechar o leque de representações do sujeito. George Orwell já mostrou isso em “1984” (1949): o Big Brother diz que é preciso criar uma nova linguagem e proibir que a antiga seja usada. Por quê? Porque ela está impregnada de sentidos que não são favoráveis a esse ambiente totalitário.
 

Essa nova linguagem totalitária pode ser representada, hoje, pela tecnologia?

Penso que sim. Todas as semanas eu recebo aqui no consultório pequenos pacientes, com menos de três anos de idade, que só falam inglês. Por quê? Porque têm suas relações mediadas por aparelhos eletrônicos. Os filhos estão incorporando em si a representação desse outro, um artefato mecânico que lhe oferece na tela luminosa todas as fantasias previamente desenhadas. Essas fantasias têm a particularidade, como ocorre com qualquer artefato mecânico, de repetir a história sempre do mesmo modo. Quando contamos uma história a nossos filhos, eles costumam se queixar de que nunca termina ou começa da mesma maneira, não é mesmo? Pois a tecnologia acaba com isso, ela narra sempre da mesma forma. É mecânico, ela não se equivoca nunca. E errar, nesse caso, é fundamental para que possamos buscar o que está do outro lado do erro. Se não, não há curiosidade. Estamos produzindo e fabricando turistas.
 

Turistas?

É. O que é o turista convencional? Alguém que gasta um monte de dinheiro para ir ao lugar que quer ver e se fotografa de costas para o objeto em questão. E que, quando volta para seu lugar no mundo, não consegue modificar o objeto que viu e muito menos a si mesmo. Um turista não se compromete com nada em termos de resultados. Não faz laços amorosos permanentes com lugar nenhum. Os turistas vivem de paixões fugazes.


O que os adolescentes costumam levar a seu consultório?

Eles chegam, em geral, com angústias bastante autênticas em relação a seu futuro, que hoje está muito incerto. Quando me perguntam se há uma epidemia de depressão, digo que não. O que há é uma epidemia de angústia pela sobrevivência. Material, principalmente. Mas também sobrevivência dos ideais, das ilusões, de ser alguém neste mundo. Isso é terrível.
 


As redes sociais ajudam a potencializar essa angústia?

Penso que sim, principalmente ao darem a esses jovens a ilusão de uma notoriedade rápida. As notoriedades construídas na internet, nas redes sociais, são muito frágeis e passageiras, pelo menos na maioria dos casos. E os adolescentes estão preocupados com a solidão, com essa fragilidade das relações sociais. Também com a velocidade de relações que não se sustentam. Já com 13 ou 14 anos esses jovens estão sabendo que este mundo é social e afetivamente inóspito. Na família também, porque os pais estão sendo sugados o tempo todo pelos modos de sobrevivência. A sociedade atual comprime e esmaga as pessoas de uma forma terrível.
 

O empobrecimento da linguagem, causado em parte pela internet, é um risco?

Acho que a Psicanálise deveria se empenhar seriamente em reduzir a intermediação de crianças muito pequenas com artefatos eletrônicos. Em 120 anos de experiência clínica, aprendemos que uma relação entre mães e pais e seus filhos é a semente, o tecido fundamental em que se apoiam todas as significações posteriores. E se não se constrói o código de relações e o código afetivo nessa época da vida, a criança e o posterior sujeito sempre vai viver em desvantagem em relação a seus semelhantes. Nesse sentido, vejo com preocupação essa espécie de atrofia da linguagem.
 

Por que o senhor nunca voltou para a Argentina?

Devo dizer que ainda mantenho laços de trabalho com a Argentina. Sou presidente da Fundación para el Estudio de los Problemas de la Infancia (Fepi) e professor convidado da Universidad Nacional Tres de Febrero, entre outras atividades profissionais e acadêmicas. Ocorre que a minha geração foi dizimada pela ditadura militar, ferozmente injusta e cruel. Nessas condições históricas, voltar ao lugar do qual partimos se torna uma mera fantasia: esse lugar não existe mais, apesar dos traços culturais continuarem a tecer laços dessa identidade. As raízes de nossas origens formam parte do nosso destino. Qualquer imigrante sabe, como eu sei, que nunca deixará de perceber a diferença entre os ventos da sua antiga terra e os ventos de sua nova terra. Mas ele precisa fazer de ambas uma terra própria, porque se assim não o fizer ele só conseguirá ser um pária sem rumo. Ter duas mães hoje em dia, em alguns casos, pode ser melhor do que ter somente uma. Mas com a condição de que o sujeito em questão continue a praticar a mesma ética, lá ou aqui.
 

Assista aos vídeos com o depoimento do psicólogo Alfredo Jerusalinsky em youtube.com/crprs