REPORTAGEM PRINCIPAL


A pandemia da Covid-19 veio para mudar vidas: rotinas alteradas, privilégios e desigualdades sociais foram
evidenciados ou se agravaram com o aumento da pobreza, da violência contra algumas populações e do desemprego.
A Psicologia é convocada a atuar nessa dura realidade, contribuindo para salvar vidas e diminuir sofrimentos.
O momento é também de reflexão sobre como a organização social produz injustiças e promove violações de direitos.
E para analisar essa realidade atual, a revista Entrelinhas conversou com representantes de diferentes segmentos da sociedade.
 

Covid 19 e os impactos
da pandemia
em diferentes realidades.

 
Para o médico sanitarista Emerson Merhy, professorde Saúde Coletiva da UFRJ, a ausência de uma política de combate à Covid-19 coloca o Brasil em uma situação dramática. “Enquanto países já estão se estabilizando, o Brasil está lidando com um crescente número de mortes. Devemos prestar atenção não só no volume de casos, mas sim como a doença está em evolução. É isso que acontece quando não se tem uma política por parte do governo federal unificando o conjunto dos entes federativos em uma estratégia comum de ação. Esse não é um dado de incompetência, isso é uma estratégia, uma forma de fazer política”.
 
O governo federal, segundo Merhy, vem se organizando como um bloco de representações sociais que advogam, com suas ações, naquilo que define como práticas necroativistas. “O conjunto de suas políticas no campo econômico, social e cultural não é um conjunto de ações de produção de vida, mas, sim, de mortes. Representa uma ideia de uma parcela da população brasileira que considera que só algumas vidas importam, por isso a mortandade absurda e a violência contra indígenas, população negra, LGBT e várias minorias. Diante da pandemia, cria uma grande confusão no imaginário social sobre a credibilidade da ciência e, ao mesmo tempo, monta estratégias de sonegação da informação e ataque àqueles que se opõem às suas ações, associando a isso o seu controle de um Estado policial perseguidor”. Merhy prevê que chegará o momento de um caos social, em que a população irá se rebelar contra essa política. “O governo faz alianças com grupos políticos para manejar instituições, como parte das polícias, incentivar grupos de milícia e advogar o caos social. Quanto maior o caos, mais aumenta seu poder de governar de maneira necroativista na sociedade brasileira”.
 
“ENQUANTO PAÍSES JÁ ESTÃO SE ESTABILIZANDO, O BRASIL ESTÁ LIDANDO COM
UM CRESCENTE NÚMERO DE MORTES. DEVEMOS PRESTAR ATENÇÃO NÃO
SÓ NO VOLUME DE CASOS, MAS SIM COMO A DOENÇA ESTÁ EM EVOLUÇÃO...”
 
A força dos grupos sociais organizados trabalhando em conjunto com profissionais da Saúde é destacada por Merhy como uma estratégia que vem se mostrando eficaz no combate ao coronavírus. “O que tem acontecido é o fracasso da medicina altamente dependente de tecnologias, de altos custos e, normalmente, em ambientes hospitalares. A situação tem revelado que as práticas de saúde de maiores intensidades relacionais são as que mais contribuem para o combate à pandemia”. Nesse sentido, Merhy defende a necessidade de as/os profissionais de saúde refletirem sobre as relações interprofissional e “entre profissional”. “É exatamente no ‘entre profissional’ que estão os coletivos populacionais e os usuários, que têm o saber das suas existências para dividir. É fundamental problematizarmos isso e perceber o quanto também existe uma crise na modelagem nas profissões, hoje, no Brasil”.
 
O impacto da pandemia da Covid-19 tornou ainda mais evidentes lacunas e fragilidades de políticas voltadas a diferentes populações, como LGBTs, quilombolas e indígenas.
 
 

 
“No quesito gênero e sexualidade é interessante avaliar a falta de acesso a protocolos de saúde, algo que já acontecia até mesmo antes do surgimento da Covid-19, mas que pode, também, estar sendo agravado pelo momento atual”, explica a psicóloga Sofia Favero, ativista trans ligada à Associação e Movimento Sergipano de Transexuais e Travestis e representante do CRPRS no Comitê Técnico de Saúde LGBT do Rio Grande do Sul. Sofia lembra que pessoas trans, por exemplo, ainda enfrentam obstáculos quando buscam serviços nas unidades básicas, tendo em vista questões relacionadas à forma que gostariam de ser chamadas e aos profissionais que pretendem consultar. “A procura por uma especialidade, como seria o caso da ginecologia, permanece sendo uma impossibilidade a homens trans, fazendo com que as demandas se tornem ininteligíveis a um sistema de marcação de consultas”. Para ela, esses novos tempos trazem a necessidade de se pensar políticas públicas à população LGBT que levem em consideração suas demandas, não necessariamente seus lugares de enunciação, e que combatam, principalmente, uma tradição tutelar na assistência. 
 
Para Sofia, a Psicologia deve contribuir na quebra de paradigmas, possibilitando ampliar o acesso à saúde por parte de pessoas LGBTs, que tem sido, historicamente, circunscritas às políticas epidemiológicas. “A Psicologia está aí disputando com uma série de saberes a possibilidade de (re)criar a vida. Por esse ângulo, precisamos afirmar a potência das vidas LGBTs conforme vidas possíveis, vidas que valem a pena ser vividas, que têm uma potência criativa inegociável. Os coletivos e organizações voltados a discussões sobre gênero e sexualidade têm produzido mídias e encontros digitais para que essa distância seja menos expressiva e para que os relatos possam circular. Às vezes, nosso trabalho clínico está justamente em afirmar a amplitude dessas vozes e, de certo modo, ajudá-las a ir além das paredes dos nossos consultórios (ou das nossas telas de computador)”.
 
Em relação à violência movida por gênero e sexualidade em tempos de isolamento social, Sofia acredita que o conflito pode não ter uma raiz na discriminação, mas que, por causa do processo de se isolar, acaba sendo lido precocemente dessa forma. “O importante é que possamos ver o problema sem necessariamente abordá-lo a partir de binários. Como se a família fosse desde sempre ruim e a pessoa também fosse sempre ser atacada. Pelo contrário, o interessante é compreender que existem fatores que escapam de uma dinâmica puramente sexual. Precisamos admitir o seguinte: as pessoas são mais do que suas identidades. Elas têm personalidades, jeitos, manias, rotinas, rituais. Pode ser que esse período se apresente não como um ciclo de violência, mas de reconciliação”.
 
“O GOVERNO FAZ ALIANÇAS COM GRUPOS POLÍTICOS PARA MANEJAR INSTITUIÇÕES, COMO PARTE DAS POLÍCIAS, INCENTIVAR GRUPOS DE MILÍCIA E ADVOGAR O CAOS SOCIAL. QUANTO MAIOR O CAOS, MAIS AUMENTA SEU PODER DE GOVERNAR DE MANEIRA NECROATIVISTA NA SOCIEDADE BRASILEIRA”.

Para os indígenas, a pandemia chegou sendo acrescida às inúmeras violações e violências que essa população enfrenta  desde a invasão do Brasil. “Infelizmente este lugar de vulnerável, a depender da ‘atenção’ do Estado, está posto – exigindo dos povos indígenas a luta diária de reafirmar seus direitos, sua dignidade e sua diversidade cultural, a base de sangue e de suas vidas. O Estado tardou ações/protocolos para evitar que a pandemia chegasse aos territórios indígenas. Planos de enfrentamento à Covid-19 deveriam ter sido articulados previamente considerando a organização social dos povos indígenas, pautadas na coletividade, no compartilhar de objetos, espaços e subjetividades”, destaca a psicóloga Edilaise Vieira (NitaTuxá), pertencente ao povo indígena Tuxá da Bahia. 
 
Os números de indígenas infectados e de óbitos só crescem e acendem o alerta das divergências das notificações das organizações indígenas e da Secretaria Especial de Saúde Indígena, que excluem os indígenas em contexto urbano*. Enquanto indígenas aldeados sofrem com questões de logística – como falta de recursos materiais e dificuldades de deslocamentos em casos de emergência – os indígenas não aldeados, que já não eram assistidos, tornaram-se ainda mais vulneráveis, pois não são incluídos nos protocolos e planos emergenciais do governo, tendo seu pertencimento identitário invisibilizado. “Há muitos entraves na elaboração de políticas públicas que sejam de fato, efetivas e que acolham a diversidade dos povos, ao passo que garantam a igualdade uma vez que, elas surgem sempre em modelos universalizantes, construídos por e para não-indígenas”. Além disso, a demanda principal dos povos indígenas é o direito de viver e a proteção de seus territórios, espaços onde possam subjetivar sua organização sociocultural. “Isso ainda é negado, pois, desde sempre, sofrem ameaças de invasões aos seus territórios (garimpos, desmatamento, barragens, entre ouras), sofrem a ausência de demarcações de terras, são discriminados e marginalizados”. 
 
 
Nita Tuxá relata que os povos indígenas não criaram resistência às recomendações da Organização Mundial da Saúde, pois a pandemia foi, desde o princípio, considerada como uma ameaça, já que historicamente, no processo da colonização, uma das armadas utilizadas pelos colonizadores para o genocídio foi a “doença”. “Na medida das possibilidades, as comunidades mudaram suas rotinas, adiaram rituais e festejos, aderiram ao fechamento ou restrições da entrada de pessoas em seus territórios. O que nos parece luz em meio a tanta escuridão deste contexto é que as organizações indígenas, juntamente com aliados, estão criando estratégias para suavizar e/ou superar a situação. Temos presenciado organizações não governamentais garantindo lugar de fala aos indígenas, criando espaços de debate para provocar ações governamentais; temos visto campanhas de doações de alimentos e materiais de higiene; intervenções locais de assistência (no âmbito municipal). São perspectivas para impulsionar ações intersetoriais. Precisamos ter em mente que, sob qualquer contexto, vidas indígenas importam”.
 
Para o Conselho de Anciões da Comunidade Kilombola Morada da Paz – Território de Mãe Preta CoMPaz, localizada no município de Vendinha, a pandemia da Covid -19 corporifica e intensifica aquilo que já conhecem: a presença de um estado nocivo. “Temos um Estado que planeja e executa políticas públicas voltadas ao controle dos corpos, das culturas, da vida das pessoas negras, sem reconhecimento ou apoio e zelo por aquilo que nos importa.  Políticas que produziram extermínio da memória e depreciação da população negra trazida ao Brasil pelo regime de escravidão e que seguem atuando com as mesmas estratégias até os dias de hoje”. 
 
As medidas de restrição e isolamento impostas não levaram em consideração as necessidades de comunidades como essa. “Diante da pandemia o estado não considerou as necessidades específicas de acesso à comunicação e ao transporte público, por exemplo. A estratégia de educação à distância produziu ainda mais desigualdade, na medida em que a localização do nosso território, fronteira entre dois municípios, não oportuniza acesso aos meios digitais e torna ainda mais desigual o acesso à educação. Com a restrição de transporte intermunicipal e urbano tornou-se pouco viável a mobilidade dos moradores e as trocas entre as comunidades”, explicam.
 

“NO QUESITO GÊNERO E SEXUALIDADE É INTERESSANTE AVALIAR A FALTA DE ACESSO A PROTOCOLOS DE SAÚDE, ALGO QUE JÁ ACONTECIA ATÉ MESMO ANTES DO SURGIMENTO DA COVID-19, MAS QUE PODE, TAMBÉM, ESTAR SENDO AGRAVADO PELO MOMENTO ATUAL”.

 
A Comunidade Morada da Paz entende que as estratégias de combate ao coronavírus adotadas pelo governo evidenciam e reiteram as políticas racistas e de eliminação. “As comunidades kilombolas e tradicionais foram, mais uma vez, abandonadas para se gerir, mas perguntamos: como é possível se gerir com nada?  Nesse momento de pandemia e pandemônio o que se sobressai são as atividades autogestionadas de grupos e pessoas isoladas, em que conseguimos perceber no inferno aquilo que não é inferno, onde se consegue encontrar solidariedade e compaixão e a possibilidade de re-existir”.
 
As dificuldades de se cumprir o isolamento social quando não se tem condições mínimas para isso e a força da solidariedade também é relatada por Rodrigo Rodrigues, presidente da Associação de Moradores da Vila Tijuca, Morro Santana, em Porto Alegre. Ele lembra que nas primeiras semanas o sentimento geral era de medo e incertezas. “Poucas pessoas se arriscando a sair de casa e preocupação, principalmente com as crianças. Passado esse primeiro momento a situação foi ficando mais preocupante, pois se percebeu que seria um processo longo o isolamento. Para as famílias das áreas mais altas do morro, ainda tinha o agravante das constantes falta de água, o que era uma necessidade para garantir a higienização. E agora, principalmente nas áreas mais desassistidas, o principal problema é a questão da renda e da alimentação. Muita gente se arriscando e voltando às ruas, e muita gente procurando algum tipo de assistência social”.
 
A Associação mantinha um convênio com a Fundação de Assistência Social e Cidadania, que garantia o funcionamento do Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV). De acordo com Rodrigo, o contrato foi suspenso e as crianças perderam este serviço e o local onde muitas faziam suas únicas refeições. Para driblar essas dificuldades, a Associação vem se organizando com ações solidárias, buscando garantir itens básicos de higiene e alimentação para as famílias da região. Também estabeleceu parcerias com os cursos de Química e Farmácia da UFRGS, para fornecer álcool gel e EPIs para as agentes de saúde e assistentes sociais, e com o projeto Ação Rua, cedendo o espaço da Associação para garantir banho, roupas limpas e alimentação ao menos três vezes por semana para a população em situação de rua.“Em paralelo, seguimos cobrando uma postura e resposta mais eficiente do poder público, que deveria estar garantindo o mínimo necessário para que essas pessoas pudessem de fato estar cumprindo com o isolamento social com alguma dignidade”, cita Rodrigo.
 
“TEMOS UM ESTADO QUE PLANEJA E EXECUTA POLÍTICAS PÚBLICAS VOLTADAS AO CONTROLE DOS CORPOS, DAS CULTURAS, DA VIDA DAS PESSOAS NEGRAS, SEM RECONHECIMENTO OU APOIO E ZELO POR AQUILO QUE NOS IMPORTA.  POLÍTICAS QUE PRODUZIRAM EXTERMÍNIO DA MEMÓRIA E DEPRECIAÇÃO DA POPULAÇÃO NEGRA TRAZIDA AO BRASIL PELO REGIME DE ESCRAVIDÃO E QUE SEGUEM ATUANDO COM AS MESMAS ESTRATÉGIAS ATÉ OS DIAS DE HOJE”
 
As diferentes falas nos mostram que a pandemia da Covid-19 evidenciou problemas já existentes na sociedade e que o fundamental, nesse momento, é reforçar o compromisso da Psicologia na defesa da vida. 
 
*Informações sobre esses registros podem ser encontradas no site da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) http://apib.info/apib/
 

 

 
 
Entrevista na íntegra: