REPORTAGEM PRINCIPAL
Diante da pandemia da Covid-19, a Psicologia precisou se reinventar. Profissionais, em seus diferentes âmbitos, tiveram que adaptar seu fazer e o atendimento on-line passou a ser uma realidade para a maioria das/os psicólogas/os. Nesse contexto, de acordo com a Comissão de Ética do CRPRS, surgiram diversas situações e dilemas éticos acerca de que posições e práticas tomar frente ao isolamento físico/ social, uma vez que o mesmo está, muitas vezes, atrelado a práticas de segmentação e segregação, como aquelas historicamente produzidas pelo modelo manicomial, por exemplo. Quais situações deveriam ser atendidas prioritariamente? Quais os cuidados de biossegurança necessários? Que condições a população atendida tem para se proteger do vírus ou dos efeitos do isolamento social em sua saúde mental? Nossa atuação pode ajudar a comunidade a se proteger de forma mais eficaz ou acessar recursos que possam mitigar esses fatores? Que respostas (novos conhecimentos, invenções) as/ os profissionais desenvolveram individual e coletivamente no contexto de isolamento?
Inovações e desafios da Psicologia em tempos de pandemia
A psicóloga clínica psicanalista Marina Pombo (CRP 07/20844) atendia de forma remota, antes da pandemia, apenas um paciente. Com a necessidade de ampliar esses atendimentos, foi preciso transformar parte de sua casa em um consultório. “Sempre tive cuidado para informar às/aos pacientes sobre coisas que poderiam acontecer que não tinham a ver com o ambiente do atendimento, mas que fazem parte de uma vida real. Por exemplo: tenho dois gatos que miam muito se eu fecho a porta, então eles passaram a fazer parte das sessões”, revela. Para ela, com a nova realidade, vida privada, social e profissional acabaram se misturando. “Percebo que perdemos o limite do que é momento de descanso e o que é momento de trabalho. Estamos o tempo inteiro no WhatsApp, conectados na Internet, e isso, nos atendimentos, pesa bastante, porque saímos de uma sessão on-line para entrar em outra, tudo na frente do computador. Também tive que prestar atenção para que questões pessoais com a pandemia não se atravessassem nos atendimentos. Tirei uma semana de folga para me restabelecer como pessoa que também está vivendo a pandemia e não somente aquela profissional que está ouvindo as experiências dos outros”.
Em relação ao atendimento de crianças, Marina conta que começaram a andar com o celular pela casa, em vídeochamada, para mostrar objetos, decoração ou animais de estimação, sobre os quais falavam durante os atendimentos presenciais. “Percebi que passamos a transitar por uma vida concreta e isso não acontecia antes. Combinei com os pais de deixar um ambiente seguro, com brinquedos. Assim, eles podiam ir me mostrando e a gente brincando, via câmera”. Já com adolescentes essa adaptação não foi tão fácil. “A adolescência é um momento que se necessita de muita privacidade e estar on-line quebra essa barreira, há sempre essa preocupação de estar sendo vigiado ou observado”.
Sem conseguir garantir os cuidados de biossegurança necessários com a pandemia, a psicóloga clínica Thais Vieira (CRP 07/24608) acabou optando em atender somente de forma remota, mesmo tendo uma redução no número de pacientes. “Não tinha como garantir os cuidados sanitários necessários em uma sala com pouca ventilação. Nós psicólogas/os, enquanto profissionais e agentes políticos, devemos garantir esse olhar para o social, para o coletivo, que é o que a pandemia chama”. A partir dessa decisão, o principal desafio foi organizar um consultório dentro de casa. “Eu sou mãe de uma criança pequena, passo o dia com a minha filha e, quando meu marido chega, de noite, vou trabalhar. Os pacientes começaram a ficar sabendo mais sobre a minha vida pessoal, ouviam minha filha batendo na porta ou meus gatos, por exemplo”.
Esse novo formato de trabalho gerou consequências físicas para Thaís. “Ficar com o corpo parado, sentado, diante de uma tela, com fones de ouvido, durante muitas horas me deixa muito cansada no final dos atendimentos. Comecei com zumbido nos ouvidos, dor nos olhos e dor nas costas”. Apesar da sobrecarga, principalmente para as mulheres nessa pandemia, ela ressalta um lado positivo disso tudo. “Antes da Covid-19, minha vida era uma correria e bem desgastante, lembro de me sentir ansiosa, correndo contra o tempo para poder dar conta de tudo. Agora, tenho outros cansaços, mas essa ansiedade, enfrentar o trânsito, por exemplo, eu não tenho mais. De certa forma, meu tempo está mais organizado e eu fico mais com a minha filha”, analisa.
“Nós psicólogas/os, enquanto profissionais e agentes políticos, devemos garantir esse olhar para o social, para o coletivo, que é o que a pandemia chama”.
As preocupações com questões de biossegurança também alteraram a rotina de atuação do psicólogo clínico Diego Gonçalo (CRP 07/21842), coordenador do Núcleo de Processos Clínicos e Psicossociais da Subsede Centro-Oeste do CRPRS. “Me tornei muito mais atento em relação a manter o ambiente limpo. Realizo higienizações constantes, desde a recepção, sala de atendimento e banheiros, até objetos que os pacientes supostamente tocaram”. Diego se organizou para atender presencialmente em determinados dias e remotamente em outros, seguindo a preferência dos pacientes. “Percebo muitos colegas que passaram por dificuldades na hora das adaptações, mas eu, pelo fato de ter um espaço adequado em casa, pude fazer os atendimentos on-line a partir de onde eu moro, sem interrupções e, ainda, não tive problemas com conexão de internet, tampouco com a questão de sigilo. Fazer essa mudança na forma de trabalhar foi uma experiência muito tranquila para mim”. Diego relata, no entanto, certa ansiedade gerada por não estar frente a frente dos pacientes. “Muitos deles eu nunca encontrei no consultório porque já começaram a terapia de forma on-line. Isso me causou, no início, até mesmo dores de cabeça e no corpo. Muito dessa tensão vem de questões como: o sigilo seria resguardado? A conexão seria mantida? Se houvesse queda na Internet ou falta de energia elétrica, o que eu faria? E, ainda, a insegurança de poder não estar sendo compreendido ou não compreender”.
A necessidade de que os pacientes tenham um ambiente seguro, com privacidade, é uma preocupação para Diego. “Muitos não têm um ambiente adequado para a consulta on-line, então, precisaram adaptar-se e fazer suas sessões de terapia em outros ambientes. Às vezes, apenas por ligação telefônica, caminhando na rua ou dentro de seus carros, porque não há privacidade em suas casas”.
“Percebo que perdemos o limite do que é momento de descanso e o que é momento de trabalho”.
Estratégia de cuidado de profissionais da Saúde
Atuando em um espaço de escuta criado pela prefeitura de Bento Gonçalves para dar suporte em saúde mental às/aos trabalhadoras/es da Saúde que estão na ponta no combate à pandemia do novo coronavírus, a psicóloga Francele Magnus (CRP 07/20968) conta sobre sua experiência. “No início, não sabíamos muito bem quais os cuidados de biossegurança que deveríamos tomar, nem a que exatamente a gente estava exposta/o. Havia muita insegurança a respeito de tudo que estava acontecendo. Em um primeiro momento, fizemos busca ativa, ou seja, ligamos para as/os profissionais e oferecemos esse trabalho de escuta”. Localizada no mesmo prédio da Unidade de Pronto Atendimento (UPA), Francele conta que, algumas vezes, em situações de crise, as/os profissionais procuraram o serviço, que funciona com plantões.
Com o tempo, criaram outras estratégias de cuidado, como a organização do projeto “Coral da Saúde”, seguindo todas medidas de biossegurança necessárias. O Coral da Saúde é um encontro semanal, no pátio da UPA (espaço aberto), onde as/os trabalhadoras/es se juntam para cantar e conversar. “Como podemos conviver uns com os outros, ter uma vida desejável e produtiva, com o mínimo de alegria, de contato e troca, e, ainda assim, estar garantido de segurança? O Coral Saúde respondeu a isso. É um momento de descontração e de um contato possível neste período de isolamento”, explica. Outra iniciativa do município foi organizar reuniões virtuais denominadas “Café com escuta”, Estratégia de cuidado de profissionais da Saúde em que profissionais dos serviços de Saúde debatem temáticas específicas. “Aproveitamos para falar outros assuntos que já eram pertinentes antes da pandemia, como saúde mental na atenção básica, autocuidado, alimentação e nutrição”, revela Francele.
A equipe desse espaço de escuta também passou a realizar buscas ativas às famílias enlutadas pela Covid-19. “Os atendimentos são feitos de maneira remota, a gente liga, se identifica e escuta, escuta a dor e, de alguma maneira, acolhe o luto dessas famílias. Recentemente começamos a fazer reuniões presenciais com grupos pequenos, em um espaço arejado e com todo cuidado, porque nem todas as famílias estão habituadas a usar meios virtuais”.
Avaliando o impacto da pandemia nas políticas públicas, Francele destaca o trabalho realizado também pelo CAPS em Bento Gonçalves. “No CAPS II, em que atuo, fizemos muitos atendimentos remotos e foi um momento que alguns limites ficaram bastante evidentes, como, por exemplo, o horário de trabalho: o que é o pessoal e o profissional? Como eu não estava todo momento no CAPS e precisava acompanhar os pacientes, eu me deparava, muitas vezes, fazendo o atendimento remoto do meu telefone pessoal e consequentemente, no fim de semana, eu também estava recebendo ligações do paciente. Acabamos nos colocando muito mais como sujeito que cuida do que um profissional que responde por uma política pública”, analisa.
Adaptações no Judiciário
Psicóloga do Tribunal de Justiça do RS, Adriana Pinto de Mello (CRP 07/03674) atua em processos relacionados à violência doméstica e conta sobre os desafios que surgiram diante da pandemia e a consequente suspensão de prazos processuais e dos atendimentos técnicos presenciais. “Tínhamos notícias do aumento significativo dos índices de violência doméstica, exigindo que as intervenções técnicas voltassem a ocorrer, mas adaptadas às limitações e às necessidades impostas pela pandemia. Precisamos buscar novas referências, repensar questões relativas à ética e à tecnologia. As discussões entre as/os psicólogas/os e outros técnicos do judiciário e o respaldo do CFP e CRP foram fundamentais para balizar alternativas de intervenção”.
Inicialmente, a atenção foi aos novos fluxos de trabalho na instituição e às questões mais concretas como as condições físicas e tecnológicas para os atendimentos virtuais. Posteriormente, foi feito um trabalho sobre a importância da realização das entrevistas na modalidade virtual, enfatizando questões relativas ao sigilo profissional e à privacidade necessária aos atendimentos. “Foi preciso, também, adaptar os documentos produzidos às condições do atendimento remoto, situando o contexto da pandemia, as circunstâncias particulares de cada entrevista e, consequentemente, referindo suas limitações e especificidades”, recorda Adriana.
Para Adriana, o desafio diário tem sido repensar a prática, revisitar referenciais teóricos e reinventar uma modalidade de intervenção que contemple os princípios éticos, a qualidade de trabalho e os cuidados com a saúde e a vida, além da dificuldade em articular possibilidades de circulação e acolhimento, mesmo que virtuais, nos diversos espaços da rede. “Nos processos dos juizados da violência doméstica, as psicólogas trabalham para produzir documentos que contribuam para fundamentar as decisões judiciais e articular os encaminhamentos necessários a serviços da rede, pública ou privada. A pandemia trouxe uma série de pontos que, em muitos casos, agravaram a situação de crise, como a angústia gerada pela proximidade do adoecimento e da morte; o confinamento; o convívio mais intenso entre as pessoas numa mesma casa e os problemas financeiros decorrentes da pandemia. Para a maioria das pessoas, reduziram-se os espaços de troca, de fala, e as entrevistas psicológicas, mesmo que remotas, ganharam relevância como espaço para colocar em palavras os conflitos e vivências”.
No Judiciário, o atendimento remoto resultou em uma diminuição da formalidade. “Mesmo sendo orientadas a buscarem locais com privacidade, atendem as chamadas no tempo e espaço que dispõem, podendo ser o horário do almoço num canto da obra, o intervalo na sala do escritório ou o tempo entre uma corrida e outra no carro do motorista de aplicativo. Além disso, após as entrevistas, em diversos casos foram enviadas mensagens com documentos ou fotos tentando comprovar o que havia sido dito, pedidos de encaminhamento ou mesmo mensagens de voz com reflexões produzidas a partir da entrevista. Outra situação que se apresenta nas entrevistas virtuais são os esforços para controlar mais explicitamente o discurso, tentando guiar a entrevista por um roteiro previamente escrito, contendo a história do casal e do conflito. Houve situações nas quais o roteiro foi enviado por mensagem de texto antes ou depois da entrevista. Desta forma, o processo de atendimento estendese para além dos limites da videochamada e cada caso exige uma reflexão”, ressalta Adriana.
Em relação à rede de atendimento, para Adriana, há fragilidades e insuficiências, mas também potencialidades que fazem a diferença no suporte às/aos usuárias/os. “A articulação com as unidades básicas de saúde possibilita um olhar e uma escuta mais próximos que, especialmente neste momento, são um importante fator de proteção. No entanto, na rede pública, é difícil encontrar espaços que acolham homens envolvidos nas situações de violência doméstica. Os CAPS AD têm sido uma das poucas possibilidades de atendimento, mas apenas quando há a problemática do uso de álcool e/ou outras drogas. As situações de violência doméstica são complexas e, muitas vezes, mesmo após decretada a medida protetiva, ou havendo a separação do casal, persistem os laços e a convivência, seja por questões relativas à conjugalidade, à convivência com os filhos ou ao patrimônio. É importante que os homens envolvidos nestes conflitos domésticos também tenham espaços de fala e de escuta, o que pode redirecionar conflitos e diminuir as repetições das agressões”.
“A articulação com as unidades básicas de saúde possibilita um olhar e uma escuta mais próximos que, especialmente neste momento, são um importante fator de proteção”.
Desde o início da pandemia, o CRPRS conseguiu se manter próximo da categoria com a realização de lives temáticas e reuniões por vídeochamadas, ampliando as possibilidades de participação. Além disso, o Sistema Conselhos trabalhou rapidamente na produção de notas orientativas e aprimorou o e-Psi, cadastro obrigatório para o atendimento on-line. Saiba mais em crprs.org.br.
Saiba mais:
Protocolos de Biossegurança e Guia de Orientação para profissionais de Psicologia podem ser acessados em https://www.crprs.org.br/publicacoes.
Orientações às/aos psicólogas/os que atuam no Sistema Prisional podem ser conferidas na Nota Técnica sobre atuação durante a pandemia, disponível em https://bit.ly/3lFJyUq, e sobre o processo de avaliação psicológica realizada nesse contexto, em https://bit.ly/2UlzZOd.
Todas as notas e orientações para atuação em contexto da pandemia da Covid-19, emitidas pelo Sistema Conselhos de Psicologia, estão disponíveis em https://www.crprs.org.br/covid19.