No Dia Internacional da Redução de Danos, o CRPRS reforça a implicação da Psicologia na defesa dessa política como estratégia de cuidado a pessoas que sofrem em decorrência do uso de substâncias psicoativas. Dessa forma, reafirma o compromisso da profissão com as políticas públicas de saúde que promovem justiça social e os direitos humanos.
Para destacar a importância da autonomia do sujeito e do cuidado no território e em liberdade, o CRPRS convidou psicólogas/os que trabalham com o tema a refletir sobre a política de Redução de Danos.
Marta Conte – psicóloga (CRP 07/02528), psicanalista, participante do FERD RS (Fórum Estadual de Redução de Danos), da Abramd Sul (Associação Multiprofissional de Estudos sobre Drogas) e suplente pelo CRPRS no CONED/RS (Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas).
Manuele Monttanari Araldi – psicóloga (CRP 07/23514), especialista em educação permanente em saúde (UFRGS). Atua no consultório privado e no CAPS AD IV Centro Céu Aberto.
Pedro Sitta – psicólogo (CRP 07/22158), educador popular em saúde e redutor de danos. Atua como psicólogo em CAPS AD na Rede de Atenção Psicossocial de Porto Alegre e com atendimentos on-line. É integrante do Fórum Estadual de Redução de Danos e vice-presidente do CONED/RS (Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas).
- Qual a importância da Psicologia na Redução dos Danos?
Marta Conte: A diretriz de trabalho da Redução de Danos (RD) foi se construindo, desde os anos 90, a partir das contribuições das práticas compartilhadas entre redutores de danos e trabalhadoras/es da rede de saúde coletiva, justiça, assistência, entre outras. A origem do trabalho de campo da RD se deu a partir do corpo-a-corpo dos Redutores de Danos em contato direto com os usuários e locais de uso de drogas. Foi essa imersão corajosa, respeitosa e acolhedora que ofereceu aos diferentes campos do conhecimento os aprendizados necessários para uma abordagem diferenciada com os usuários de drogas. A Psicologia inserida na prática da Clínica Ampliada, integrada no trabalho em equipe multiprofissional, está sintonizada com as condições da subjetividade de sujeitos e grupos, a saber: riscos sociais e subjetivos, estratégias de proteção/redução de danos, história de vida e saberes adquiridos em suas vivências, desejos e rede de apoio. Nesta perspectiva, a profissão colaborou para a produção de saúde coletiva com usuários de drogas, facilitando o acesso à saúde, de forma humanizada, resolutiva e ética. Isto é, sem tratamento moral e criminalizante. Muito foi construído nas trocas entre usuários e rede de atenção psicossocial. O que iniciou somente pela troca de seringas nos anos 90, ampliou-se, no contato cotidiano e respeitoso com usuários, para trocas sociais, afetivas e de cuidado, mudando a visão que a sociedade tinha com relação aos usuários de drogas. Essa mudança de visão facilitou que os avanços legais fossem consolidando a RD, como diretriz de trabalho, somada às capacitações com equipes multiprofissionais.
Manuele Monttanari Araldi: A Redução de Danos (RD) é uma ética do cuidado que existe sem depender de nenhuma ciência ou área de atuação, mas pela sua própria natureza de abrangência, ela constrói o conhecimento em conjunto com múltiplas áreas. E a Psicologia é uma das áreas que contribuiu imensamente para o fazer e a teoria da RD, na aplicação prática da teoria e na produção de danos.
Pedro Sitta: É difícil separar a Redução de Danos da Psicologia, ambas estabelecem uma aliança clínica orientada por uma base ética-estética-política em direção ao cuidado, à afirmação da vida, ao reduzir para ampliar modos de existência e, às vezes, sobrevivência, direitos humanos e sociais básicos que possibilitam acolhimento e vínculo, favorecendo a leitura de contextos e realidades de maneira singular. A base ética se distingue em acompanhar a existência, a produção de corpos e as subjetividades de forma livre, integral e afirmativa. A base política, por sustentar-se em uma dimensão do fazer com dimensões coletivas, sociais e, também, de forma singular e afetiva. A base estética possibilita processos inventivos e criativos, a fim de produzir outros encontros com o outro e, também, da própria posição da/o psicóloga/o e, assim, possibilitar o desenvolvimento/expansão de processos de existências significativas, projetos de vida e subjetividades.
- Qual o atual contexto da política de Redução de Danos no país?
Marta Conte: O atual contexto da política de Redução de Danos no país, de 2019 para cá, aponta para o desmonte, com oferta de recursos imensos às Comunidades/Fazendas Terapêuticas e leitos para internação involuntária. O problema é a imposição no abandono das drogas, sem levar em conta as condições da subjetividade e as particularidades de cada sujeito e grupo, recrudescendo uma visão social criminalizante e estigmatizante dos usuários de drogas.
Manuele Monttanari Araldi: Atualmente a Redução de Danos (RD) é a base da política nacional sobre drogas, que direciona o fazer de toda a sociedade em relação a essa temática. Porém, há muita desinformação em torno do que significa a RD, que nada mais é do que a promoção de saúde e acesso a direitos básicos em qualquer que seja o contexto que o sujeito se encontre. A RD sempre vivenciou, e hoje vivencia de forma mais acentuada, um processo de marginalização, promovida pelo fato de o campo de álcool e outras drogas ser cercado de conhecimento não científico e práticas não comprovadas e pela atuação de grupos que lucram com práticas arcaicas e isolacionistas.
Pedro Sitta: A Redução de Danos (RD) tem passado por um caminho institucional com pouca força política e de compreensão do cuidado de maneira ampliada. A Psicologia é ponto fundamental para fazer um enfrentamento e uma composição com diversos saberes e práticas de cuidado postos em disputa até então. No Rio Grande do Sul, diversos programas de Redução de Danos sustentam-se por base das/os trabalhadoras/es da área, gestores sensíveis ao tema e usuários, espaços de mobilização social como o Fórum Estadual de Redução de Danos, FERD RS e o Movimento Nacional da População em Situação de Rua. Em Porto Alegre, temos experiências exitosas como projetos de geração de renda, moradia, educação, assistência social e cuidado (Amada Massa, jornal Boca de Rua, Programa Mais Dignidade, Escola EPA, Ação Rua, e os CAPS AD) que vêm desenvolvendo uma mobilização social e uma produção estratégia/técnica em RD em diversos contextos e políticas públicas. A "nova” política sobre drogas (Lei 9.761 de 2019) coloca uma dimensão punitivista – por meio da repressão, em que o foco é a abstinência, em uma lógica biocentrada, ou seja, que utiliza métodos como controle bioquímico dos afetos e comportamentos, descaracterizando outras profissões com o cuidado interdisciplinar. Incentiva o aumento de repasse às Comunidades Terapêuticas e a redução do investimento em CAPS AD e na Rede de Atenção Psicossocial como um todo. Para a construção dessa política, o Governo Federal excluiu do debate diversos conselhos de classes e associações, inclusive o Conselho Federal de Psicologia, mostrando a direção atual do Estado frente às políticas públicas sobre drogas: longe de práticas emancipatórias, de cuidado, preservação da autonomia e, consequentemente, das práticas de RD. A partir daí, a RD tornou-se, novamente, um campo de disputa e postura ético-estético-política junto às/aos trabalhadoras/es da Rede e das pessoas que fazem uso de substâncias psicoativas. A RD, assim como a Psicologia, insiste e resiste em reconhecer e afirmar a diferença, o acesso universal às políticas públicas, a pensar nas condições de possibilidade para abertura de processos de vida, do cuidado integral e equânime das pessoas, dos afetos, das relações sociais e dos modos de existência.
Saiba mais sobre o tema acessando as “Referências técnicas para atuação de psicólogas(os) em políticas públicas de álcool e outras drogas”.