O dia 18 de Maio, Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes foi instituído pela Lei 9970/2000 com o objetivo de mobilizar e convocar a sociedade brasileira a se engajar no enfrentamento à violência sexual de crianças e adolescentes, bem como na defesa dos seus direitos.
A data foi escolhida, pois há 38 anos, em 18 de maio de 1973, o assassinato de uma menina de 9 anos incompletos, Aracelli Cabrera Crespo, em Vitória-ES, chocou o país. Araceli foi seqüestrada, drogada, estuprada, teve seu rosto desfigurado com ácido, entre outras barbáries. A história desse crime, contada por José Louzeiro no livro Araceli, Meu Amor (1979) denuncia muitos dos ingredientes da violenta rede de exploração e abuso sexual de crianças e adolescentes em nossa sociedade: implicação da rede familiar, abuso de poder, tráfico de drogas, corrupção e impunidade.
Araceli morava com os pais e o irmão mais velho e era uma criança que tinha uma vida modesta, mas aparentemente nada incomum para as meninas da sua idade. Na tarde de 18 de maio de 1973 Araceli não voltou da escola que freqüentava regularmente e seu corpo só foi encontrado seis dias depois em um matagal, irreconhecível para o próprio pai. Desde o seu desaparecimento uma seqüência de informações e fatos coloca-nos diante da complexidade do fenômeno da violência. O envolvimento da mãe com o uso, tráfico e distribuição de drogas foi determinante para o final trágico de Araceli, que naquele dia saiu mais cedo da escola porque foi entregar drogas, a pedido da mãe. Os “clientes” eram conhecidos, jovens de famílias tradicionais, acostumados a “festinhas de embalo”, regadas a drogas e a prática de abuso sexual de crianças e adolescentes, apostando na impunidade que o dinheiro dos pais podia comprar. Várias estratégias de aliciamento de crianças eram utilizadas por esses jovens e Araceli foi vítima delas. O caso seguiu um rumo estarrecedor, a impunidade dos responsáveis não só ficou evidenciada, como alguns empenhados em desvendar o crime foram mortos ou afastados de seus cargos. Os assassinos, mesmo indiciados, ficaram livres.
Infelizmente casos como o de Araceli, com roupagens mais ou menos cruéis ainda são freqüentes em nosso país. O avanço da legislação, especialmente com a promulgação do ECA há quase 21 anos, não garantiu a legitimação pela sociedade dos direitos da criança e adolescente. Estamos caminhando e precisamos refletir permanentemente sobre o tema. Em se tratando de crianças e adolescentes, todas as práticas profissionais devem ser norteadas por esse conjunto denominado “Doutrina da Proteção Integral”, que deve ser encarada como a expressão jurídica de um projeto de sociedade, a ser colocado em prática pelo conjunto dessa mesma sociedade, na perspectiva de criar uma cultura de cidadania que de fato corresponda, na realidade objetiva, à proteção especial de crianças e adolescentes. Esse é um grande desafio para os(as) psicólogos(as).
Lembrar do caso emblemático da Araceli neste 18 de Maio é fazer uma convocação a toda sociedade e em especial aos(as) psicólogos(as) para que, atentos(as) às realidades que se apresentam, possam de fato fazer avançar a ciência e a profissão na compreensão, na prevenção e no atendimento da violência sexual contra crianças e adolescentes. Esse fenômeno envolve diferentes realidades - familiar, social, econômica, política, jurídica - que estão assentadas em uma cultura e organizadas em uma rede dinâmica e autoritária de produção de violência, a qual devemos nos contrapor com uma rede efetiva de parcerias e políticas.
A violência sexual contra criança e adolescente é prática criminosa, e devido a valores culturais e morais, arbitrados pela sociedade, ainda tem pouca visibilidade social e política, o que dificulta o seu efetivo enfrentamento. As transformações sociais necessárias para mudar essa realidade dependem da formação de uma nova mentalidade e principalmente de uma ampla revisão de valores, conceitos e preconceitos que se manifestam nas relações sociais e interpessoais. O enfrentamento à violência sexual requer, portanto, o compromisso e responsabilidade social de todos a fim de se criar um novo olhar e uma nova forma de relações entre adultos e crianças e adolescentes.
Sintam-se convocados a lembrar sempre do 18 de Maio aqueles que não perderam a capacidade de se indignar com todas as diversas formas de violência, aqueles que não estão indiferentes e que estão dispostos a compor a rede de proteção de crianças e adolescentes, para por fim a uma das formas mais cruéis de violação de direitos humanos.
Sandra Maria Francisco de Amorim
Conselheira do Conselho Federal de Psicologia