Moacyr Scliar
Biopsicossocial é uma expressão muito usada. E significativa. Para começar, observem a ordem dos três componentes. Primeiro vem o biológico, que é a coisa mais básica, aquilo que partilhamos com um réptil ou um inseto: os órgãos, as funções corporais. Depois vem o psíquico, que é a introdução à nossa humanidade: o pensamento, as crenças, os sentimentos. E por último o social, que coroa a nossa evolução histórica e cultural. Entre o biológico e o social está o psíquico. Freqüentemente numa posição desconfortável, como já veremos.
Na semana passada um debate surgido em Porto Alegre propagou-se pelo país. Trata-se da proposta de uma pesquisa científica, que começará com jovens delinqüentes e que tem por objetivo investigar as raízes da criminalidade. A investigação inclui mapeamento cerebral, uma técnica atualmente muito utilizada e que, aparentemente desencadeou a polêmica. Resumindo: o estudo foi criticado porque privilegiaria os aspectos biológicos, enveredando assim por um caminho que, no passado, levou ao racismo e à eugenia, ou seja à seleção (às vezes pelo simples assassinato) de indivíduos mais sadios. Teorias mais recentes, como a sociobiologia, popularizada nos anos setenta pelo pesquisador americano Edward O. Wilson, também tentam explicar o comportamento humano e social com base na evolução biológica e na genética. Estas idéias foram contestadas por Richard Lewontin e Stephen Jay Gould. Surgiu daí a idéia de que os defensores do biológico são de "direita" (com muitas aspas), enquanto que aqueles que valorizam o social são de "esquerda" (idem). Mas nem sempre foi assim. Tomem o caso de Darwin, por exemplo, em quem Wilson se baseou. O cientista inglês era considerado um radical contestador, inclusive e principalmente porque contrariava a doutrina do criacionismo. Mais tarde, a tese da sobrevivência do mais apto passou a ser utilizada por ideólogos neoliberais. Resultado: darwinismo social é uma expressão execrada pela esquerda.
No caso dos estudos do cérebro, a polêmica é outra. De um lado a idéia segundo a qual é no cérebro (na química cerebral) que devemos procurar a origem de problemas mentais e emocionais, tratando-os com medicamentos, se for o caso - uma idéia que tem o poderoso apoio do seguro-saúde norte-americano e da indústria farmacêutica. De outro, estão aqueles que defendem a psicoterapia como um tipo de relação humana capaz de ajudar as pessoas. De novo, é o psicológico entre o biológico e o social.
Agora: notem que estas coisas não são excludentes. Uma discussão mais serena, mais desapaixonada, pode mostrar os limites do biológico, do psicológico e do social. O importante é avaliar os fatos, não as conotações. No caso da pesquisa científica, e exatamente por causa das barbaridades cometidas pela ciência nazista, temos hoje os comitês de ética, cuja atividade é importante e não raro decisiva. Mas o debate que o assunto suscitou foi e é útil. Da discussão sempre nasce a luz; ruim é o apagão da intolerância. Como disse Darwin numa carta a seu admirador Karl Marx: "I believe that we both earnestly desire the extension of knowledge", "Acredito que nós dois honestamente desejamos a ampliação do conhecimento."