O CRPRS esteve em Santa Maria, nos dias 26 e 27/01, participando das atividades que marcaram os dez anos do incêndio na boate Kiss. As conselheiras do CRPRS Eliana Sardi Bortolon, Maria Luiza Diello e Marina Medeiros Pombo e a conselheira vice-presidenta do Conselho Federal de Psicologia (CFP), Ivani de Oliveira, acompanharam os atos de homenagem a vítimas e manifestações contra a impunidade do caso, organizados pela Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), Coletivo "Kiss: Que Não Se Repita" e o Eixo de Trabalho Kiss do Coletivo de Psicanálise de Santa Maria. As atividades aconteceram na praça Saldanha Marinho, no centro de Santa Maria, e reuniram centenas de pessoas com o objetivo de preservar a memória das vítimas e construir um futuro seguro.
“Estar em Santa Maria nesse momento propiciou poder re-olhar para a vida como nosso bem maior, estampada na face e na existência de pessoas que tiveram perdas tão intensas, por poder levar para os campos de conversação da Psicologia, as transversidades e transversalidades vindas dos acontecimentos da Kiss, para que possamos ser uma categoria melhor e mais amorosa, não somente na tragédia, mas também na reverberação da vida que isso propaga! Entendo que a Psicologia trabalha com a vida e com os modos e processos de subjetivação e, nessa seara, precisamos pensar e olhar também para a impunidade que permeia uma sociedade perversa e individualista; para a promoção da cultura do cuidado e da prevenção; e para a mobilização para que desastres e tragédias, que acontecem por conta da negligência e do descuido, não se repitam. Isso move as pessoas que sofrem com esses acontecimentos, sabendo que nada trará os seus amores de volta, mas que isso pode reverberar em vida, para que outros amores, para que outras gentes, não sejam levadas do mesmo modo, de forma abrupta”, avalia a conselheira Maria Luiza Diello.
Para a conselheira Marina Medeiros Pombo, o espaço de trocas e testemunhos foi tão curativo que o movimento de apoio psicológico e de acolhimento acabou sendo necessário em poucos momentos. “Esses espaços de escuta e de fala, de estarem ali entre eles, me parecia um espaço de fortalecimento, de memória, de poder contar uma história e dizer que ela foi uma história importante sim, que ela não pode ser esquecida. Então, por mais que todos tivessem muito emotivos, me pareceu um espaço muito curativo, muito de demarcação do que aconteceu”, revelou a conselheira. Destacou ainda a importância de trabalhar com esses assuntos para que eles não caiam num movimento de não reparação. "Entendo que nesse momento estamos falando muito de reparação por vias da lei e acho que isso também seja importante e necessário, mas me parece que vai muito além disso, vai muito numa reparação de poder contar suas histórias e de marcar o quanto isso é importante e que não é um fato para ser esquecido.”
O dever ético da Psicologia, contribuindo com a atenção psicossocial em situações de desastres e emergências e na defesa de desfecho judicial para familiares e sobreviventes foi ressaltado pela conselheira do Conselho Federal de Psicologia (CFP), Ivani de Oliveira, que estava no estado participando de atividades do Fórum Social Mundial e foi até Santa Maria acompanhar a programação pelos dez anos da Kiss e visitar a Subsede Centro-Oeste do CRPRS. “Nossa participação reforça o compromisso da Psicologia brasileira em estar presente tanto em situações de calamidades, emergência de desastres, área em que nós temos desenvolvido estudos, produzido orientações para categoria, ampliando o conhecimento e a atuação qualificada e ética, sem perder de vista uma dimensão que é extremamente importante para a saúde mental: a justiça. Após dez anos as famílias ainda não obtiveram uma resposta na justiça. Viver sem justiça é ter um impedimento na área da saúde mental, da possibilidade de existir com maior tranquilidade de viver. Evidentemente uma punição ou um desfecho não traria de volta as vidas perdidas, mas daria aos familiares um fechamento, um encerramento da situação. Ao estar ali com aquelas pessoas, senti um efeito coletivo da forma como nós podemos lidar com as nossas perdas e a importância da justiça social, para que seja possível existir com mais saúde.”
Ivani destaca a importância de se refletir sobre a forma como esse acontecimento marca não só o município de Santa Maria, mas o estado do Rio Grande do Sul e o nosso país. “A importância de prevenção, de cuidado, de proteção da vida dos nossos jovens e a noção de que o ganho e o lucro nunca podem se sobressair à prevenção e ao cuidado são algumas marcas. Para a Psicologia, a partir desse evento, aprendemos a nos organizar, a pensar em serviços de Saúde Mental em longo prazo, que permitam um acompanhamento. Os serviços de atendimento psicossocial, a atuação da Psicologia desenvolvida em Santa Maria repercute nacionalmente na organização de orientações e referências técnicas para nossa categoria profissional”, avalia a conselheira do CFP.
Representando esse serviço de atendimento psicossocial da cidade, a psicóloga Sabrina Raquel Ludwig do serviço Santa Maria Acolhe, reforça a importância desse acompanhamento ao longo desses dez anos. “Minha trajetória com a escuta de pais, familiares e sobreviventes do incêndio da boate Kiss iniciou em 2019, com a nomeação como psicóloga na prefeitura municipal de Santa Maria e entrada no Santa Maria Acolhe, serviço municipal que teve sua origem imediatamente após a tragédia. De lá para cá, tenho me posto a escuta do traumático, escuta essa que implica uma disponibilidade e sensibilidade frente aquilo que é da ordem do insuportável ao sujeito, se permitindo fazer parte da narrativa daquilo que é contado. Implica, assim, uma presença enquanto pessoa e enquanto cuidado. Nesse sentido, o apoio psicossocial nos marcos pós tragédia, assim como foi no júri em 2021 e nas homenagens de 10 anos do 27 de janeiro, se faz na importância do reconhecimento e da validação da dor e do sofrimento daqueles que foram afetados e seguem lutando pela memória e justiça. Aos psicólogos, é demandada a presença, seja numa escuta, num abraço, num carinho ou olhar atento e sensível aos momentos mais intensos. Requer pensar na necessidade da abertura para a clínica ampliada, que ensina sobre o estar junto e acompanhar todos os processos”.
A força do coletivo e do sentimento de pertencimento a essa tragédia é destacada pela psicóloga Bruna Osório Pizarro, integrante do GT Kiss do CRPRS e do Coletivo de Psicanálise de Santa Maria. "Resgatar a memória é construir o futuro. Esse é o slogan que lançamos neste momento, início dos dez anos do incêndio na boate Kiss. Vivi esses últimos dias, na mesma intensidade do dia 27 de janeiro de 2013 e os dias seguintes. Mas, passados dez anos, percebi que tinha algo diferente, me reposicionei quanto ao meu “pertencimento”. O pavor deu lugar para o sentimento de impunidade. Achei lugar, conhecendo, por meio da narrativa, de imagens e afeto, tantas pessoas que se foram. Pensei no futuro: no que quero ensinar para a minha filha e na segurança dela dentro de uma boate ou qualquer ambiente fechado. Tive a oportunidade de viver esse trauma de forma coletiva. Encontrei amparo, escuta e amor. Temos a ilusão que esquecer é seguir em frente. Mas só podemos ‘virar páginas’ se fizermos algo com aquilo que foi vivido. E, por isso, a importância dessas intervenções na cidade, que possibilitam, em ato, fazermos registros no tempo, construirmos narrativas possíveis para essa ferida aberta. Que possamos seguir construindo caminhos coletivamente!”
- Ouça o episódio 29 do CRPcast “Boate Kiss: impacto da imunidade nas subjetividades”