Confira a seguir a íntegra do Parecer elaborado pela Conselheira e presidente da Comissão de Direitos Humanos do Conselho Regional de Psicologia do RS (CRPRS), Cristina Schwarz:
“Acredito que um evento que anuncia a intenção de pautar as transgeneridades como uma epidemia está se baseando em uma lógica patologizante, que associa as identidades de gênero não normativas a uma doença e, ao mesmo tempo, um perigo iminente a ser evitado e, em última instância, a ser eliminado. Como exemplo, se pensarmos nos incessantes alertas relativos aos riscos atribuídos a uma epidemia do Coronavírus, é fácil ver como a ideia de uma epidemia nos remete a uma ameaça que devemos eliminar. Entendo que discursos como estes se pautam em uma suposta neutralidade científica que nada tem de neutra, pois ele enquadra a população que vivencia o gênero de forma diversa da norma de congruência entre sexo e gênero (que chamamos cisgênero) como alvos a combater. Discursos como estes contribuem para a proliferação da cultura de ódio e discriminação em relação às diversidades de gênero e sexualidade porque, ao reforçarem seus alvos como ameaças, legitimam as iniciativas de determinadas pessoas e grupos pela sua eliminação. Precisamos agir sobre esta cultura que faz do Brasil o 4º país que mais mata pessoas LGBTIs no mundo e que faz com que, por exemplo, tenhamos no RS números alarmantes de mortes por violência de gênero de pessoas transexuais – em Santa Maria, por exemplo, foram 4 travestis assassinadas entre setembro de 2019 e início de 2020. A ameaça que precisamos debater é esta: a da violência e da intolerância.
Assim, penso que a iniciativa desta palestra, além de extremamente infeliz, é discriminatória e um desserviço para a caminhada que estamos empreendendo enquanto sociedade por um mundo com mais liberdades e mais respeito à pluralidade dos modos de ser, de viver, de existir.
Um evento baseado na premissa do perigo de as transgeneridades estarem acometendo a infância, propondo-se à orientação de mães e pais, corre o risco de dificultar a compreensão dos pais sobre o que de fato acontece com seus filhos. Não colabora para a construção de vínculos familiares efetivos, que contribuam para o jovem se ver apoiado. Pelo contrário: em vez de promover ferramentas para os pais se fortalecerem para acolher os filhos e filhas trans e ajudá-los em seu processo de autodeterminação e no enfrentamento de adversidades como o preconceito a que estão/estarão expostos, a premissa do perigo contribui para reforçar uma ideia de pânico e rejeição que enfraquece o vínculo familiar, deixa o/a jovem isolado/a, diminui suas chances de terem com quem contar.
E cabe lembrar: a identidade de gênero não é uma escolha; é uma condição da existência de cada um, como muitas outras condições simplesmente são. Mas quando se defende a ideia de que a transexualidade é epidêmica (e, portanto, é uma doença ameaçadora), estamos reforçando não só a ideia de um diagnóstico, mas estamos classificando as experiências reais, a forma como as pessoas são lidas nos seus modos de agir, a forma como o que elas expressam e como elas conhecem de si mesmas vai ser levada em conta, a partir dessa noção de doença, perigo. Patologizar significa agir a partir da ideia de que uma pessoa trans não tem autonomia para decidir a forma como ela vai viver e que a vida dela é perigosa pra nós. O discurso baseado na patologização reforça a marca que historicamente se construiu em torno da ideia de anormalidade associada a sofrimento (sofrer por não se reconhecer em seu corpo), quando na verdade o sofrimento está em não se ver cabendo neste mundo pautado por uma normatividade cisgênera. E impor que alguém se formate ao padrão da cisgeneridade pela pressão à adequação a norma social é, isso sim, uma saída produtora de sofrimento e adoecedora para crianças, jovens, adultos. Não ter direito a ser quem se é, é uma experiência absolutamente violadora do direito à liberdade e nociva à saúde mental. Abordagens como essas reforçam a transfobia, e a transfobia é notadamente um dos fatores de maior adoecimento psíquico entre pessoas trans e travestis. Então, o medo à diferença protege, de fato, as crianças? Não; ele isola, marginaliza, faz sofrer e adoece. Quando se corrobora este tipo de prática, estamos caminhando na direção de que projeto de construção de si pra esses sujeitos? Precisamos parar de ver as mudanças como perigos. A sociedade muda, é viva, e nela não cabe mais recusar-se a pensar as mudanças na nossa forma de pensar e viver que estão em curso e que nos cabem aceitar e reconhecer e promover.
A proposta subjacente ao anúncio da palestra, por seu caráter patologizador, atenta inicialmente ao próprio direito à personalidade previsto em nosso Código Civil, além do direito à dignidade da pessoa humana disposto na Carta Magna brasileira.
Além disso, o viés patologizador fere alguns dos principais marcos políticos e legais relativos à promoção dos direitos de pessoas LGBTIs e que se pautam pela garantia dos direitos humanos dessa população, tanto nacionais como internacionais, como: os Princípios de Yogyakarta, que refletem a aplicação da legislação de direitos humanos internacionais à vida e à experiência das pessoas de orientações sexuais e identidades de gênero não normativa (dentro os quais destaco, como exemplo, os princípios 2, 17, 18 e 19); a Declaração Universal dos Direitos Humanos em seu princípio de igualdade disposto no Art. 1º; a Declaração de Durban, que ratifica o princípio de igualdade e de não discriminação.
No tocante à Psicologia, ademais, este viés vai de encontro ao princípio do Código de Ética Profissional do/a Psicólogo/a, nossa lei maior, fundamentado no princípio do respeito e na promoção da liberdade, da dignidade, da igualdade e da integridade do ser humano, bem como do enfrentamento de todas as formas de discriminação e opressão.
O Conselho Regional de Psicologia do RS entende que as expressões e identidades de gênero, longe de serem doenças, transtornos mentais, desvios e/ou inadequações, dizem respeito à experiência de cada pessoa na forma como vivencia seu gênero dentro das múltiplas possibilidades da existência humana. Por isso, entendemos que, da forma como está proposto na chamada, o referido evento se baseia no imperativo à cisnormatividade e legitima práticas que historicamente excluem e violentam pessoas trans; que naturalizam o estigma que ela impõe às vivências de gênero, sem problematizar seus atravessamentos culturais e seus significados sociais.
Compreendemos que esta palestra vai na contramão de todo o acúmulo de discussão empreendido nas últimas décadas acerca da despatologização das identidades de gênero não normativas, pela sociedade civil e pela comunidade acadêmica e científica, nacional e internacionalmente, à qual nos somamos.
A Psicologia contribuíra historicamente para a legitimação da patologização, pautando as experiências trans em torno dos diagnósticos que produzem respostas padronizadas sobre os corpos e reforçando a normatização da identidade dos indivíduos. Por isso, o Sistema Conselhos de Psicologia vem empreendendo o debate pela desconstrução de práticas profissionais discriminatórias e pela consolidação de contribuições de nossa profissão e ciência na promoção da saúde e dos direitos das pessoas LGBTIs. Estas se materializam inicialmente na Resolução CFP 01/1999 (que veda a patologização da homossexualidade na atuação da Psicologia) e na Resolução CFP 01/2018 (que proíbe a patologização na prática profissional com pessoas trans e travestis). Atentos à necessidade de sensibilizar tanto a categoria profissional quanto à sociedade, O CFP e os CRPs, por meio de suas Comissões de Direitos Humanos, publicaram em 2019 o livro Tentativas de Aniquilamento de Subjetividades LGBTIs, onde estão descritas diversas experiências de opressão, estigma, ataques às vivências sexuais e de gênero não normativas que ainda hoje são vividas por pessoas LGBTIs (muitas delas frutos de experiências recentes de tratamentos de saúde mental). Em âmbito regional, o CRPRS também enuncia seu posicionamento contrário à patologização das transidentidades em documentos técnicos como a nota técnica que orienta quanto à não utilização de diagnósticos que classifiquem a transexualidade como doença.
Existe uma pluralidade de autodenominações de transidentidades, e entendemos que é papel da ciência e da sociedade repensar-se para acolher a pluralidade de combinações que podemos negociar entre nossos corpos e nossas identidades. Entendemos que é nosso dever, como categoria profissional, refletir sobre a incidência de nossa prática na promoção da autonomia e no exercício da liberdade de todas as pessoas. A Psicologia tomou para si a tarefa de se repensar, de abrir-se à mudança e de reconhecer o saber que as próprias pessoas carregam sobre si mesmas. Esperamos que todos/as os/as profissionais que trabalham com a subjetividade percebam que é tempo de assumir esse compromisso”.
Fonte: Jornal Extra Classe