por Loiva Maria de Boni Santos
Em um mundo cada vez mais integrado, no qual o conceito de multidisciplinaridade atravessa e enriquece todas as áreas do conhecimento, trazendo a contribuição de diferentes saberes para o enfrentamento e superação de problemas, soa, no mínimo, anacrônica e ultrapassada a posição contida no Projeto de Lei 7703/06, que tem por objetivo a regulamentação da profissão médica no Brasil. A regulamentação é legítima e apoiada por nós psicólogos, assim como pelos demais trabalhadores da área da saúde. No entanto, através de seu artigo 4º, que pretende tornar atividade privativa do médico a “formulação do diagnóstico nosológico e a respectiva transcrição terapêutica”, o PL avança de forma inaceitável sobre os direitos de outras categorias profissionais na área da saúde.
Acatar que o diagnóstico nosológico seja tarefa de apenas uma profissão, torna o cuidado em saúde, no mínimo, reducionista. Com isso, impede que profissionais de outras áreas da saúde possam exercer livremente essas atividades em suas respectivas áreas de conhecimento científico, já regulamentadas em leis anteriores.
É importante ressaltar que, para além de reivindicações classistas, esta pretensão de uma categoria – na forma atual do projeto de lei – tenta estabelecer uma inaceitável hierarquização do setor de forma inconstitucional. Na lei de criação do Sistema Único de Saúde (SUS), vale lembrar, estão explícitas as diretrizes da integralidade do cuidado e a descentralização dos serviços. O PL propõe, ainda, que apenas médicos possam ocupar cargos de chefia de serviços médicos, porém não define o significado de serviços médicos. Isto abre brechas para diversas interpretações, entre elas, que qualquer serviço de saúde, por ter em sua equipe médicos, seja considerado um serviço médico, desconsiderando que todos os serviços de saúde pressupõe uma equipe multidisciplinar, sejam eles ambulatórios, Centros de Atenção Psicossocial – CAPS, Hospitais, Núcleo de Apoio à Saúde da Família – ESF/NAS, etc.
A profissão médica não pode se arvorar em sinônimo de conhecimento total da complexa área da saúde humana. Hoje, no mundo inteiro, o conhecimento de saúde já não se mantém restrito a uma só profissão, mas é encarado como um conceito social, englobando conhecimentos e saberes de diferentes áreas. O ato médico isola a atuação de outras profissões, resguardando ao médico a maior fatia do campo, e o maior prejudicado é o usuário do sistema que continuará sendo visto de forma fragmentada, o que desumaniza o atendimento em saúde.
Nossa luta contra o Projeto de Lei do Ato Médico não é contra o trabalho médico. Reconhecemos a importância deste profissional nas equipes de trabalho, tanto quanto reconhecemos a importância de todos os outros trabalhadores. Acreditamos e desejamos que todos os profissionais nos serviços de saúde, trabalhando de forma complementar e parceira, garantem um atendimento integral, abrangente e qualificado pela prática interdisciplinar que possibilita trocas, humaniza o atendimento e melhora os processos de trabalho em saúde.
Ressaltamos ainda que essa luta seja também em defesa dos direitos dos cidadãos brasileiros, adquiridos pela árdua luta de trabalhadores e usuários, a partir de um conceito ampliado de saúde, que deu origem ao SUS, hoje referência em países da Europa e Estados Unidos.
Considerando o exposto, o Conselho Regional de Psicologia, juntamente com demais conselhos profissionais, é a favor da regulamentação da profissão do médico, defendendo reiteradamente o trabalhado interdisciplinar em saúde. Os tempos são de ampliar e contribuir com os avanços da ciência em todos os setores, não de fechar e privilegiar um setor – à custa da saúde de toda uma população.
Mais uma vez, estamos nos mobilizando junto à bancada do Estado do Rio Grande do Sul no Senado Federal, como já aconteceu anos atrás, pra garantir a qualidade dos serviços prestados à população brasileira, conquistada historicamente pela luta e mobilização dos trabalhadores e usuários de saúde.
Somos favoráveis a regulamentação da medicina, porém não aceitamos o engessamento proposto pela Lei do Ato Médico.
Loiva Maria De Boni Santos é psicóloga e conselheira presidente do Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul (CRPRS).