A Justiça Federal de Pernambuco reconheceu, em sentença proferida neste mês, a ilegalidade da Resolução Nº 3/2020 do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad). A normativa regulamenta o acolhimento em comunidades terapêuticas de adolescentes com problemas decorrentes do uso, abuso ou dependência de álcool e outras drogas.
Na sentença, a juíza federal Joana Carolina Lins Pereira destaca que a Resolução Conad apresenta vícios materiais e viola as regras protetivas da criança e do adolescente previstas na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente.
Para a juíza, ficou evidenciado que a fiscalização e o controle, pelo Governo Federal, das regras aplicáveis aos adolescentes nesses espaços são totalmente deficitários. “A União não tem controle da quantidade de adolescentes que estão acolhidos nessas comunidades terapêuticas, bem como não possui o plano individual de atendimento de todos eles”, apontou a magistrada.
A decisão ainda frisa que existe, no Ministério da Saúde, uma norma que impede o acolhimento de crianças e adolescentes em comunidades terapêuticas. Ela se refere à Portaria Nº 3.088/2011, que instituiu a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas.
A normativa do Ministério da Saúde dispõe que comunidades terapêuticas podem oferecer cuidados contínuos apenas para adultos, reservando o atendimento de crianças e adolescentes às Unidades de Acolhimento na modalidade Infanto-Juvenil, destinadas a adolescentes e jovens (de 12 a 18 anos completos).
“Não há, portanto, autorização para acolhimento de adolescentes em comunidades terapêuticas e, menos ainda, que dividam tais espaços com adultos ali também acolhidos”, ressalta a sentença.
O texto da decisão também destaca dados do Relatório da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas, realizada pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP) em conjunto com a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC/MPF) e com o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT). O documento revela uma série de violações de direitos nesses estabelecimentos – como a realização de trabalhos forçados, contenções físicas, castigos, intolerância religiosa e de orientação sexual.
Próximos passos
A sentença proferida pela Justiça Federal de Pernambuco concluiu os trabalhos na primeira instância do processo reconhecendo, portanto, a ilegalidade das diretrizes da Resolução Nº 3/2020 do Conad.
O processo já conta, no entanto, com um Agravo de Instrumento que está em instância superior, no Tribunal Regional Federal da 5ª Região. O Agravo foi apresentado pela União ainda em 2021 para suspender uma liminar que a justiça havia concedido contra a Resolução Conad. O pedido de suspensão da liminar obteve êxito, mas o Agravo de Instrumento ainda será analisado em definitivo pelo Tribunal Regional Federal.
Até que ocorra a análise do Agravo, as medidas determinadas pela sentença proferida na primeira instância estão temporariamente com sua eficácia suspensa.
“A sentença proferida na primeira instância é fundamental, pois trata-se de uma decisão de mérito, que enfrenta com profundidade a questão e reconhece a ilegalidade das diretrizes da Resolução Conad Nº 3/2020. É com base nessa análise de mérito que o Tribunal Regional Federal irá analisar os próximos passos do processo”, ressalta a presidente do Conselho Federal de Psicologia, Ana Sandra Fernandes.
Segundo a presidente da Autarquia, a decisão da Justiça Federal da 5ª Região é uma vitória de premissas basilares que vertem a Psicologia brasileira: a promoção da dignidade humana e de um cuidado em liberdade, assentados numa lógica antimanicomial. “De uma forma robusta e embasada em argumentos irrefutáveis, a justiça proíbe a manicomialização da juventude e seus impactos perversos, garantindo os princípios do atendimento humanizado e da redução de danos”, pontua.
A Ação Civil Pública
Além de requerer a ilegalidade da Resolução Conad Nº 3/2020, a Ação Civil Pública questiona todos os contratos, convênios e termos de parcerias realizados para o custeio de vagas para adolescentes em comunidades terapêuticas com base na normativa. O Conselho Federal de Psicologia (CFP) participa da Ação na condição de amicus curiae.
Na decisão que reconhece a ilegalidade da Resolução do Conad, a juíza Joana Carolina Lins Pereira determinou o cancelamento dos contratos, convênios e termos de parceria realizados pela União para o custeio das comunidades terapêuticas que tiveram como base a normativa.
A decisão estabelece o prazo de 90 dias para o desligamento dos adolescentes atualmente acolhidos nas comunidades terapêuticas e que o Ministério da Saúde assegure o atendimento destes jovens por meio da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) do Sistema Único de Saúde (SUS).
A sentença também determina a interrupção de financiamento federal a vagas para adolescentes nas comunidades terapêuticas. A decisão ressalva os casos de adolescentes internados por decisão judicial.
Para Filippe Mello, psicólogo e integrante da Comissão de Direitos Humanos (CDH) do Conselho Federal de Psicologia, a sentença é uma conquista na luta pela proteção da infância. Mello participa de inspeções em comunidades terapêuticas há cinco anos e integrou a audiência instrutória da ação, testemunhando a ausência de separação de ambientes entre adolescentes e adultos nestas instituições.
“A Psicologia tem o compromisso ético de combater qualquer normativa ou orientação que vise a retirada de liberdade de crianças e adolescentes nesse país. Por isso, toda a categoria deve se manter mobilizada nos próximos passos do processo que visa a derrubada da Resolução 3/2020 do Conad”, assevera o psicólogo.
Posicionamento do CFP
O Conselho Federal de Psicologia historicamente atua na defesa de um tratamento humanizado das pessoas com sofrimento psíquico causado pelo uso abusivo de drogas, tendo como perspectiva que essas pessoas têm direito a um cuidado em liberdade e à convivência comunitária, sendo asseguradas intervenções adequadas e eficazes de preservação de sua saúde mental.
Nesse sentido, o CFP posicionou-se contrariamente à Resolução Conad nº 3/2020, destacando que o instrumento responsabiliza individualmente os adolescentes, punindo-os com a privação de sua liberdade em nome de um tratamento que não resguarda sua participação na construção das medidas que visam a sua proteção.
Em sua contribuição como amicus curiae na Ação Civil Pública que questionou a normativa, o Conselho Federal de Psicologia pontuou que a resolução do Conad implicava em uma reafirmação da Doutrina da Situação Irregular do Código de Menores (1979), paradigma que compreende crianças e adolescentes como objeto de controle e coerção do Estado, e não como sujeitos de direitos.
Segundo o CFP, o retorno a este paradigma, com o acolhimento de adolescentes em comunidades terapêuticas, retomava a ideia de internação com nova roupagem e revelava as desigualdades sociais estruturais do país, “promovendo um gerenciamento seletivo de populações específicas, com estratégias para regular, controlar e normalizar os corpos, tendo relação direta com a proposta da redução da maioridade penal na medida em que estigmatiza, culpabiliza e criminalizava os adolescentes em situação de pobreza em nosso país”.
Saiba mais
Veja a íntegra da sentença do TJPE
Veja o Relatório da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas
Fonte: Conselho Federal de Psicologia.