O Conselho Federal de Psicologia (CFP) divulgou, nesta quinta-feira, 03/07, uma nota de posicionamento sobre os impactos e desafios da Inteligência Artificial (IA) para o exercício da Psicologia. O documento aborda a integração da IA na prática psicológica e ressalta a necessidade de uma abordagem ética e crítica por psicólogas e psicólogos.
“É atribuição legítima e dever do CFP posicionar-se diante do uso crescente da IA, em contextos que possam impactar de alguma forma o exercício profissional, propondo assim diretrizes e critérios éticos para a sua adoção. Não se trata de negar o avanço tecnológico, mas de garantir que sua implementação esteja alinhada aos princípios que orientam a Psicologia”, afirma o Conselho Federal de Psicologia.
O documento enfatiza que o avanço das tecnologias digitais e o desenvolvimento acelerado da IA têm gerado impactos relevantes em diversas profissões, incluindo a Psicologia, e que ferramentas baseadas em Inteligência Artificial já vêm sendo incorporadas ao cotidiano de psicólogas e psicólogos em múltiplos contextos de atuação.
O CFP ressalta que as atividades mais complexas devem ocorrer sempre sob supervisão crítica e com discernimento ético por parte da psicóloga e do psicólogo responsável, que são passíveis de orientação e fiscalização dos Conselhos Regionais de Psicologia (CRPs). O documento elucida que o uso das ferramentas de IA exige da categoria profissional uma postura atenta, crítica e ética, capaz de avaliar os limites, riscos e possibilidades de sua utilização.
A nota destaca que o desafio vai além de adotar ou rejeitar a Inteligência Artificial, no sentido de construir formas responsáveis de integrá-la à prática psicológica, com discernimento, supervisão e atualização permanente. O Conselho Federal de Psicologia se compromete a acompanhar a evolução do tema, promover o diálogo contínuo com a categoria profissional e trabalhar em conjunto com os Conselhos Regionais de Psicologia para lidar coletivamente com os desafios impostos pela IA.
Construção de diretrizes
No final de 2024, o CFP realizou um seminário para debater os impactos da Inteligência Artificial na formação e no exercício profissional da Psicologia. Este diálogo levou à criação de um grupo de trabalho com a missão de elaborar diretrizes para a atuação da Psicologia frente à IA.
O grupo tem discutido tanto o potencial da IA como ferramenta de aprimoramento profissional quanto os riscos de sua utilização indevida, especialmente a substituição de serviços especializados.
O objetivo é estabelecer diretrizes para o uso ético e tecnicamente sólido da IA, alinhando o Conselho às demais instituições que vêm desenvolvendo suas próprias orientações sobre o tema.
Acesse, abaixo, a íntegra do posicionamento do CFP
Nota de Posicionamento do Conselho Federal de Psicologia sobre Inteligência Artificial e Psicologia.
1. Introdução e atribuição institucional
O Conselho Federal de Psicologia (CFP), conforme estabelece a Lei nº 5.766/1971, tem como missão institucional orientar, disciplinar e fiscalizar o exercício da profissão de psicóloga e psicólogo e zelar pela fiel observância dos princípios de ética profissional.
Diante da crescente expansão e a integração da Inteligência Artificial (IA) em diversos âmbitos da sociedade, o CFP vem se manifestar sobre os avanços e desafios impostos por essa tecnologia, que impactam diretamente o campo da saúde mental, do trabalho, da educação, da pesquisa, das políticas públicas e das relações humanas em nosso país e no mundo.
2. O que é inteligência artificial (IA)?
No âmbito desta nota, compreende-se a IA como sistemas computacionais que simulam comportamentos associados à inteligência — como aprender com dados, reconhecer padrões, tomar decisões e interagir por meio da linguagem natural. Esses sistemas não possuem compreensão, consciência ou julgamento ético — apenas simulam aspectos do comportamento inteligente por meio de algoritmos estatísticos.
Embora as interfaces conversacionais baseadas em grandes modelos de linguagem (chatbots), a exemplo do ChatGPT, do Gemini, do Meta AI, do Copilot, entre outros, tenham tornado a IA mais visível ao grande público, essas tecnologias já vinham sendo empregadas há anos em diferentes áreas da sociedade. Algoritmos de IA operam mecanismos de busca, sistemas de recomendação de conteúdo (músicas, vídeos, etc.), triagem de currículos, segmentação de anúncios, análise de crédito, filtros de spam, reconhecimento facial, análise de exames médicos, entre outros.
3. O Impacto da IA na Psicologia
O avanço das tecnologias digitais e o desenvolvimento acelerado da IA têm gerado impactos relevantes em diversas profissões, incluindo a Psicologia. Ferramentas baseadas em IA já vêm sendo incorporadas ao cotidiano de psicólogas e psicólogos em múltiplos contextos de atuação.
A automação de tarefas repetitivas ou administrativas, como agendamento de sessões, envio de lembretes e organização de prontuários, tem sido cada vez mais comum e pode liberar tempo do profissional para o cuidado direto. Em algumas plataformas clínicas também são integradas funcionalidades mais complexas, como transcrição automática de sessões, análise de linguagem emocional e, em alguns casos, sugestão de hipóteses diagnósticas e técnicas de intervenção, com base em registros anteriores e padrões de linguagem. No entanto, tais atividades mais complexas devem ocorrer sempre sob supervisão crítica e com discernimento ético por parte da psicóloga e do psicólogo responsável.
Na atuação organizacional, ferramentas já têm sido utilizadas para auxiliar na análise de entrevistas ou pesquisas internas, identificando padrões de insatisfação ou sobrecarga emocional entre trabalhadores. Também vêm sendo aplicadas em análises preditivas de rotatividade, no mapeamento de fatores de risco psicossocial e no suporte a decisões de gestão de pessoas baseadas em dados.
Plataformas com IA também têm apoiado o acompanhamento de estudantes, podendo abranger aspectos comportamentais ou de desempenho, indicando situações que requerem atenção da escola, enquanto plataformas educativas baseadas em IA podem ampliar o acesso à formação e à informação, o que demanda definir critérios que possam garantir que seja um acesso ampliado sem prejuízo para a qualidade dos processos formativos e da informação. É de responsabilidade da psicóloga e do psicólogo que as aplicações diversas dessas tecnologias, na área da educação e em outros contextos de aprendizagem, mantenham o julgamento humano ético sobre quaisquer intervenções a serem definidas, de forma interdisciplinar e multiprofissional, com demais profissionais nas escolas e outros espaços-tempos de formação.
No campo das políticas públicas, especialmente em serviços como Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e Sistema Único de Saúde (SUS), sistemas inteligentes podem ajudar a organizar demandas, priorizar atendimentos e registrar intervenções de forma integrada. Também têm sido exploradas soluções que utilizam processamento de linguagem natural para a análise de registros de atendimentos, permitindo identificar tendências, recorrências e necessidades emergentes nas comunidades atendidas.
Da mesma forma, são também empregadas em contextos nos quais o exercício profissional, quando associado aos métodos e técnicas da psicologia, demandam avaliação ética das psicólogas e psicólogos envolvidos nesses processos de trabalho. Esses usos já estão em curso e têm se expandido à medida que os serviços se digitalizam e a tecnologia avança.
É importante ressaltar que, em todas essas situações, a IA não substitui o juízo, técnico ou ético da psicóloga e do psicólogo, que são passíveis de orientação e fiscalização dos Conselhos Regionais de Psicologia. A IA pode funcionar como aliada na sistematização de informações e no apoio a decisões mais céleres e contextualizadas.
No entanto, essa presença crescente das ferramentas de IA não deve ser interpretada como aceitação automática ou irrestrita. Ao contrário, exige da categoria profissional uma postura atenta, crítica e ética, capaz de avaliar os limites, riscos e possibilidades de sua utilização — sempre preservando a centralidade da atuação humana na escuta, no cuidado e no compromisso com a subjetividade. Tais benefícios convivem com custos sociais, psicológicos, ambientais e éticos. Nesse sentido, entre os riscos relevantes estão a reafirmação de práticas discriminatórias por meio de algoritmos, a fragilização da confidencialidade, a substituição de vínculos humanos por interações automatizadas e a opacidade de diversos processos decisórios mediados por IA.
Embora capazes de gerar textos fluidos e interativos, esses sistemas operam com base em grandes volumes de dados e em modelos matemáticos treinados para prever padrões, sem a adequada compreensão dos afetos e sentimentos e sem o devido balizamento ético. A aplicação de IA em contextos psicológicos exige cautela, pois pode produzir respostas enganosas e potencialmente prejudiciais. O uso de IA, especialmente quando apresentada com alta assertividade e aparente autoridade, pode levar à superconfiança do usuário na exatidão da informação, induzindo ao erro e reforçando discriminações de raça, de classe e de gênero, bem como comprometer o sigilo de dados sensíveis.
Tais aspectos prejudicam não apenas a qualidade da atuação profissional, mas também os direitos fundamentais das pessoas envolvidas. Isso se torna particularmente preocupante em se tratando de informações sensíveis relativas à saúde mental, cujo tratamento exige cuidados redobrados de sigilo, consentimento e responsabilidade profissional.
A avaliação do impacto da IA na Psicologia e sobre indivíduos e coletividades atendidos não pode se pautar exclusivamente por métricas de inovação e de produtividade, mas deve estar ancorada nos princípios da ética, da justiça social, da equidade e da promoção do bem-estar humano que orientam o compromisso social da categoria profissional.
4. Envolvimento da Psicologia nos debates públicos e normativos
A Psicologia deve atuar tanto no estabelecimento de critérios para o uso ético e responsável da IA, quanto na avaliação crítica dos seus impactos sociais, especialmente, sobre populações historicamente vulneráveis e marginalizadas. Psicólogas e psicólogos devem estar preparados para identificar riscos, mitigar danos e assegurar que as tecnologias promovam a equidade e respeitem a dignidade humana. A IA pode oferecer subsídios, mas não deve operar de forma autônoma em decisões que envolvem julgamento profissional. Desse modo, o CFP está elaborando, com a colaboração de pesquisadores e outros profissionais especialistas, subsídios para a orientação da categoria e da sociedade sobre o uso dessas tecnologias, no que tange ao exercício profissional da Psicologia no Brasil.
É crescente a preocupação do CFP com a proliferação de chatbots que oferecem serviços terapêuticos automatizados, muitas vezes sem qualquer mediação humana qualificada. Embora o uso dessas tecnologias na Psicologia possa ampliar o acesso e oferecer novos recursos de cuidado, a substituição da escuta clínica por respostas automatizadas compromete princípios fundamentais da prática profissional, como a singularidade do sujeito, a complexidade das demandas psíquicas e a responsabilidade na condução dos atendimentos. A atuação psicológica exige elementos como empatia autêntica e a conexão humana, julgamento ético e moral contextualizado, sensibilidade a ambiguidade e incerteza e a responsabilidade na condução dos atendimentos. Diante desse cenário, o CFP defende a importância de regulamentar o uso dessas tecnologias, alertar a sociedade para seus riscos e assegurar que qualquer inovação na área preserve o compromisso com a ética, a ciência e os direitos das pessoas atendidas.
Entendemos, portanto, que é atribuição legítima e dever do CFP posicionar-se diante do uso crescente da IA, em contextos que possam impactar de alguma forma o exercício profissional, propondo assim diretrizes e critérios éticos para a sua adoção. Não se trata de negar o avanço tecnológico, mas de garantir que sua implementação esteja alinhada aos princípios que orientam a Psicologia.
O CFP reconhece a importância em representar a Psicologia em diversas instâncias e espaços institucionais promovendo tal diálogo com as políticas públicas, com o poder legislativo e junto ao Sistema de Justiça, mantendo-se em interlocução com as áreas de ciência da computação, direito, filosofia, educação e saúde coletiva, dentre outras. Contudo, é fundamental que a categoria também se envolva ativamente nos debates públicos e técnicos sobre o uso da IA, e que assim contribua para a construção de políticas públicas e de legislações que assegurem a proteção dos direitos humanos.
5. Recomendações e acompanhamento do tema
Salienta-se que o uso de tecnologias baseadas em Inteligência Artificial, inclusive aquelas desenvolvidas por terceiros, não isenta psicólogas e psicólogos de sua responsabilidade ética e técnica. Cabe ao profissional avaliar criticamente a segurança, a adequação, os vieses algorítmicos, os limites e os riscos potenciais das ferramentas que utiliza, incluindo a exigência de que qualquer coleta, análise ou processamento de dados psicológicos com apoio de IA esteja sempre precedido de consentimento livre, informado, transparente e que o uso de dados e informações dos usuários esteja em conformidade com a
Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD (Brasil, 2018). As psicólogas e os psicólogos devem zelar para que os sistemas utilizados não reproduzam ou ampliem preconceitos, desigualdades ou discriminações de qualquer natureza.
Diante do ritmo acelerado de avanço das tecnologias de inteligência artificial, ainda não é possível definir com precisão os limites e os alcances que essas ferramentas terão no campo da Psicologia.
Novas aplicações surgem continuamente, transformando práticas, ferramentas e modos de interação com sujeitos e instituições. Esse cenário impõe a necessidade de um acompanhamento constante por parte das entidades da Psicologia, das instituições de formação e dos próprios profissionais, tanto para compreender criticamente essas inovações quanto para garantir que seu uso se mantenha ancorado em princípios éticos, técnicos e de compromisso com os direitos humanos. Mais do que adotar ou rejeitar a IA, trata-se de construir formas responsáveis de integrá-la à prática psicológica, com discernimento, supervisão e atualização permanente.
Diante desse cenário, o CFP considera fundamental:
promover o envolvimento da categoria e da sociedade civil nas discussões sobre IA e Psicologia em articulação com os Conselhos Regionais e as entidades que integram o Fórum das Entidades Nacionais da Psicologia (FENPB);
recomendar às instituições formativas a inclusão de conteúdos sobre ética e uso responsável de IA nos diversos espaços formativos em Psicologia, preparando futuros profissionais para navegar criticamente nesse cenário tecnológico em constante evolução;
participar ativamente da construção de políticas públicas e marcos legais sobre o tema;
fomentar o diálogo interinstitucional e transdisciplinar sobre os impactos e usos da IA;
incentivar o desenvolvimento de tecnologias que respeitem as singularidades culturais, sociais e subjetivas da população brasileira.
O CFP, assim, compromete-se a acompanhar a rápida evolução do tema, promover o diálogo contínuo com a categoria profissional sobre seus desdobramentos éticos e técnicos e trabalhar, em conjunto com os Conselhos Regionais de Psicologia, para lidar coletivamente com os desafios postos pela IA ao exercício da nossa profissão.
Por fim, reforçamos que, embora a IA possa gerar conteúdos com agilidade e oferecer apoio a diversas tarefas, sua aplicação exige supervisão e discernimento humanos. Cabe exclusivamente às psicólogas e aos psicólogos, em seus distintos contextos de trabalho — clínicos, institucionais, educacionais, organizacionais, jurídicos, comunitários, entre outros —, decidir se, quando e como integrar essas ferramentas à sua prática tendo como referência que o compromisso da Psicologia é com a garantia dos direitos fundamentais, com a promoção da saúde mental, com o desenvolvimento humano, com a proteção social e cidadania digna e com o exercício responsável da profissão, em todos os seus campos de atuação.
Referências
BRASIL. Lei n. 5.766, de 20 de dezembro de 1971. Cria o Conselho Federal e os Conselhos Regionais de Psicologia e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 20 dez. 1971. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5766.htm. Acesso em: 10 jun. 2025.
BRASIL. Lei n. 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Diário Oficial da União, Brasília, DF, ago. 2018. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13709.htm. Acesso em: 12 jun. 2025.
Fonte: Conselho Federal de Psicologia