Diante da data em que comemoramos os 50 anos da regulamentação da Psicologia como profissão, não seria demasiado lembrar o sentido que as datas assumem em nossas considerações: elas apenas indicam um ponto, um pequeno ponto de uma memória que não pode ser resumida e sequer reduzida a um ponto originário. Datas sempre são indícios de acontecimentos extemporâneos, expressam uma faceta daquilo que foi possível trazer à existência dentre a multiplicidade de devires que todo acontecimento contém. As datas são efeitos desdobrados de um acontecimento, tornam-se históricas porque assinalam nossa sede de origens, mas, na verdade, devem consideradas como aquele pico brilhante que, tendo sido efetuado, segue à tona, nos apontando para algo que se produziu como um possível a partir de um imenso acontecimento. As datas não assinalam uma origem, não mostram heróis e gênios inspirados; elas contemplam a direção possível de uma evolução criadora de uma multidão anônima. Referem-se sempre à expressão seletiva que podemos recolher de um combate discursivo que se travou. Não se trata, assim, de tomá-la como um em si dotado de autonomia. As datas, nada mais são do que signos a serem colocados no mundo, uma espécie de enigma dos nascimentos e das existências, cuja tradução poderá se viabilizar por diversas direções no sentido de fazê-las durar ou extinguir-se. Uma data deve sempre ser quebrada/ rachada desde sua aparência imediata e cronológica, para dar a ver aquilo que constituiu seu próprio ser e ainda aquilo em que ela pode vir-a ser, ou seja: a data pode ser vista como o positivo e como o negativo, como o saber e o não-saber de sua própria efetuação, pois ela, como efeito de um acontecimento porta seus virtuais e devires e mostra-se como aquilo que ainda nos faz questão para prosseguirmos em nossa coragem de verdade. A data aparece para ser desnaturalizada de suas aparências presentes, sendo um nó problemático que aponta antes do que foi para aquilo que virá a ser. Um aniversário e sua comemoração, antes de tudo, referem-se àquilo que está por vir, que está por se expandir, que está por evoluir de forma criadora. Assim, as comemorações não se reduzem ao que foi, mas abrem-se ao que virá. É verdade que podemos comemorar datas apenas como consagração de um passado já decorrido. Uma vida, assim, seria apenas louvada pelo que fêz, pelo que disse, pelos modos como viveu. Apenas o passado contaria e não mais os devires imanentes àquela vida.
Comemorar, em nosso sentido e sugestão, talvez pudesse, ao contrário, vir a ser o que está por devir em nossas vidas, em nosso mundo e em nosso trabalho ativo. Trata-se, portanto, de comemorarmos o “ainda não”, comemorarmos nossa persistência pelas singularizações, comemorarmos um futuro que já estando aí, em nossas mãos, pode nos tornar testemunhas de nosso tempo e construtores da história de nosso presente. Tornamo-nos, por este desígnio, testemunhas e construtores dos planos que habitamos, porque a vida que queremos fazer insistir e resistir não se refere à vida apenas transmitida e reproduzida. Estamos de aniversário cientifico e profissional! Comemoremos, pois, aquilo que nos incite à amizade ao saber, que, em verdade, significaria amizade ao não-saber que atua como nosso pior inimigo, pois, operando com a potência do negativo caótico em nós nos impulsiona, por desassossego, a expressões que não se atêm, simplesmente, a significar, a recolher dos conceitos a sua força classificatória e homogeneizante. Agora, a luta por conquistas no espaço discursivo de nossa ciência e profissão se dá entre as posições que tomamos frente ao viver e ao morrer das formas, frente ao problema das origens filiativas-mnemônicas e dos incessantes começos rizomáticos, enfim, dá-se como combate entre sossegados e desassossegados com as verdades e ideais pronunciados como naturezas do mundo e dos homens. Devemos reconhecer que a posição de enunciação face aos devires do discurso, emite e produz expressões diversas. Assim, encontramos em nosso arquivo de saber científico, muitos e diversos modos de enunciação, que entendemos oriundos exatamente destas posições discursivas - epistemológicas e ontológicas -, que nos fazem ver mundos diversos sob o mesmo mundo, que nos fazem estancar num passado ou que nos fazem ainda, perseguir a impossibilidade de dizê-los ou a encerrá-los em fórmulas prontas, já ditas, como jazendo em um passado precursor que foi capaz de realizar todo o seu presente e toda a história de seu futuro. Em seu labor por dizer o que resta a dizer, em sua labuta de inventar mundos para além do mundo já representado, em sua insana coragem de verdade, aqueles desassossegados forjam estilísticas, convocam diálogos para elementos que não pertencem à psicologia, porque se evadem, em busca de coragem, para o campo da filosofia e das artes. Buscam recursos expressivos em domínios da não-psicologia, fazem dialogar conceitos, autores e épocas em um tom atmosférico que transforma a discursividade tradicional da academia para além dos estritos caminhos de uma cognição racionalista. No esforço, nada inocente e romântico, mas altamente trabalhado, buscam converter a discursividade linguística da academia para outra, buscam uma passagem que expresse, enfim, a própria perplexidade frente ao que se lhes confronta no presente atual. Realizam uma espécie de reencantamento do concreto e, não sendo poetas e romancistas, tampouco filósofos e artistas, buscam ultrapassar, desde sua condição de acadêmicos, os limites linguísticos de sua disciplina, o que significa, antes, a superação de suas barreiras egóicas e disciplinares, porque, aqui, neste modo de expressão, algo deve acontecer primeiro no próprio sujeito que pensa, fala e escreve. Tornar-se outro a partir de um Fora que excede as medidas de um Eu e de todas atuais explicações. Pela implicação com a produção cognitiva, possibilitar um modo de pensar que acolha o advento do plano pré-filosófico e intuitivo. Pela recusa aos universais, saber e conduzir a produção de um dizer o mundo que não recua de suas singularizações, de seus casos únicos, acima dos juízos e classificações patologizantes. Pela implicação, ou seja, por aquilo que nos afeta no entreveiro empírico, saber que o que produzimos também é produção de alguém que é sujeito de uma perspectiva, de um ponto de vista e que, tendo sido convocado a enunciar sobre algo, pronunciar-se-á como uma posição relativa, e nunca como verdade incontestável e perene. Aqui, falamos de uma autoria apenas como gesto, pois se encontra embrenhada na certeza de um real em que resta algo inenarrável, algo que não é possível traduzir em palavras-cadáveres, algo que, sendo de natureza obscura e vaga, expressa-se na própria força, arruinando a própria linguagem, o próprio logos, restando,assim, a figura de um silêncio testemunhal, de um estar ali, ter estado ali, mesmo que agora, neste depois, não se encontre palavras para fazer compreender o que se presenciou e viveu.
Falamos, aqui, de um certo combate contra a neutralidade e contra os especialismos. Falamos e construímos um momento de defesa dos diálogos transdisciplinares que provocam encontros entre as estruturas e o tempo, entre arquivo e testemunho, entre história e devir. Nossa principal mentalização diz respeito ao que se move, ao que se produz incessantemente como cerne da imagem-mundo-homem. A imagem da qual partimos se faz e desfaz a cada instante, mas dura. Detém em si as potências de transformação e de permanência: nela identidade não se confunde com fixidez e padrões únicos. Identidade refere-se, antes, ao padrão mutante, àquilo que muda e que se conserva e que, ao mudar, recolhe das jazidas do passado vivido, elementos que a fazem modular-se em novas formas de futuro. Estranho paradoxo para o qual apenas encontramos apoio na filosofia. Assim, neste combate contra a permanência de formas constituídas e instituídas, estamos falando daqueles contrabandos que viemos a fazer de modos de operar de outros domínios afeitos ao campo das expressões e não exclusivos ao campo das conceitualizações e das significações. Falamos, então, dos campos da filosofia e das artes que instigam a percebermos para além de nosso sensório-motor, dirigidos aos deslocamentos do tempo, ao movere que, como elemento do mundo, nos torna videntes de outras visões pelas quais podemos acessar grandes e sutis misérias e grandezas imperceptíveis ao nosso olho nu e ordinário. Artes do abjeto, artes do sublime que nos ultrapassa e à nossa própria possibilidade de dizê-lo, que não se referem exatamente ao Belo, ao Verdadeiro e à Bom. Falamos, aqui, de uma arte e de uma filosofia abissais, que sondam os caminhos de um sem-fundo da barbárie humana e, ao mesmo tempo, civilizatória e humanizadora. Falamos da expressão do grito sem sujeito, grito de uma história infame da qual nos colocamos como produtores e testemunhos da catástrofe irrepresentável.
Há 50 anos atrás, dificilmente este tema, de diálogos entre Ciência e Arte, nos ocuparia. Sua emergência, nos dias atuais, assinala-se como parte das grandes transformações ético-estéticas e políticas pelas quais passa nossa Psicologia como ciência e profissão. Sublinhamos, assim, que entrelaçar os referenciais da ciência com aqueles advindos das artes e da filosofia procede de um plano que nos supera como indivíduos e que nos torna sujeitos de uma outra formação discursiva sobre a verdade do mundo e dos homens. Trata-se de apontar para a espetacular multidão anônima que, como em um formigueiro gigante, tece seus modos de conhecer através de rizomas a-centrados, fugidios, fragmentários e cavados, na terra, como expressão máxima de um esforço para fazer perseverar a vida, ali mesmo onde ela convoca a novas resolutibilidades. A imagem-mundo produzida através de reconhecimentos, calcada em percepções totalizantes e unificadas, imagem interessada e representável, parece ter chegado ao seu cansaço. Hoje, a partir de conhecimentos que nos mostram o mundo para além de nossas formações psíquicas, que apontam para um Fora do sujeito que somos e de nossa própria linguagem, nos possibilitam e mesmo exigem um esforço para o plano do esgotamento daquilo que ainda resta a dizer, daquilo que pode elevar nossa cognição ao plano de um empirismo transcendental. A ruína do paradigma cientificista, universalizante, neutralizante e representacional nos atira a um novo plano de buscas para talvez vir a reconciliar nosso pensamento com a própria vida em sua expressão máxima. Se há algo em que podemos acreditar, neste momento, este algo se refere à crença em nossa insuficiência para lembrar, escrever e dizer o mundo em que vivemos e a nós próprios. Entretanto, ser sabedor da insuficiência de nossas capacidades cognitivas, não quer dizer jogarmo-nos no desânimo e no nihilismo. Trata-se de um trabalho do negativo, de modos de lidar com as forças do caos em nós; refere-se à nossa potência de suportar o que ainda não somos, nossa potência de enfrentar a coragem de nossos escuros e indiscerníveis em nosso próprio presente; trata-se, ainda, de nos sabermos artífices de nosso mundo e também de nossa disciplina, pois, esta, a Psicologia, será sempre expressão daquilo que nós próprios somos, tornado-se um gênero do conhecimento humano mais ou menos permeável aos diversos estilos de seus tradutores e produtores. Não se almeja, assim, uma homogeneização do plano disciplinar. Quer-se a multiplicidade do mesmo, e, no nosso caso, sua produção se fará, cada vez mais pelo que não lhe concerne como disciplina: queremos, para a Psicologia, um impuro campo conceitual para nossa expressão e tampouco nosso desejo pode ser confundido com o fato de que queiramos ser conduzidos por critérios do juízo filosófico, literário e poético. Queremos uma brecha poética em nossa prosa, queremos uma imagem estética e sensível em nossas palavras. Sabemos que as palavras escondem ao mesmo tempo que mostram e que podem ser valises de cadáveres de sentido. Queremos outra forma de nos expressar através delas, seja quando divulgamos nossos resultados de pesquisa, seja ainda quando realizamos nossas pesquisas através de outros modos de ver o empírico, já contaminados e infectados pelo sensível que nos habita e se faz imanente ao próprio mundo. Não se conhece apenas com a razão. Conhecer algo implica em uma intrincada rede de variáveis, sensíveis e insensíveis, humanas e inumanas, o que nos faz acreditar que nunca saberemos dizer os motivos pelos quais alguém aprende. Não nos importa uma matéria analisada apenas em sua extensividade e propriedades físicas. Queremos uma metafísica, sem negarmos, contudo, que a mesma faz parte da física, queremos afirmar que no mundo há um outro dos mundos que nos cabe testemunhar e dar a ver. Não acreditamos num supra-sensível a ser revelado e tampouco num invisível a ser visibilizado. Somente partimos da verdade de nossa insuficiência e das propriedades expressivas da própria matéria: nada está escondido, nada nos transcende. A matéria é expressiva, nós, como corpos organizados culturalmente, somos, sim, limitados para ver o invisível –visível que nos afronta, porque estamos, enfim, programados para nos proteger do caos e daquilo que ainda não conhecemos.
Fazer arte, certamente diz respeito a artistas; fazer filosofia, caberia a filósofos. E a ciência? A quem caberia? Aos cientistas, certamente. Sem conduzir nossa reflexão a uma idealização e consagração dos planos filosófico e artístico, gostaria de finalizar lembrando que, em todos os domínios, seja o da ciências, seja o das artes seja o da filosofia, pode o homem vir a ser tentado a fincar raízes profundas, tão profundas que o impedem, no aqui e agora, de produzir e apreciar novas paisagens e novos lugares. Não se trata, portanto, de campos designados por si mesmos como salvadores e antitéticos da ciência a ser salva. Todos eles pertencem à mesma maquinaria, sofrem os mesmos tensionamentos históricos. Pensamos, por isso, que antes, refere-se a um estilo de habitar, a um modo de fazer existir mundos independentemente da cidade habitada, seja ela dos saberes científicos, artísticos ou filosóficos. Estamos todos no abismo das escolhas e das suspeitas, não sendo suficiente nos dizermos cientistas, filósofos ou artistas, pois sabemos que segundo a posição ocupada na formação discursiva a cada um destes domínios, caberá um modo de apropriação ou de expulsão daquilo que nos é estranho. Para alguns, torna-se diretamente natural tornar a outridade mais familiar e passível de representação e apreensão em códigos estabelecidos. Para outros, o estranho se torna seu desafio, sendo para sempre considerado inapreensível e não-representável, restando-lhes, então, a leitura infinita e para sempre inacabada do que resta ainda a dizer. É assim, que consideramos insuficiente assinalar que enquanto ciência a Psicologia se encontra atualmente dialogando com as artes e com a filosofia. Tratar-se-ia, a bem de nossa ética pela diferença e pela singularização, perguntarmo-nos: com qual arte e com qual filosofia?
Tania Mara Galli Fonseca