Para marcar o Dia da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o CRPRS promoveu em 10/12, em sua sede, o II Seminário Regional de Psicologia e Direitos Humanos – “Interfaces entre Direitos Humanos e Clínicas Psis”. A atividade abordou três temas que vêm sendo debatidos nas reuniões da Comissão de Direitos Humanos: os Direitos Humanos nas práticas clínicas, Relações Raciais e Laicidade.
Na mesa “Direitos Humanos: (In) Declarações nas práticas clínicas”, a psicóloga Sandra Torossian, que atua nas áreas de psicanálise, saúde coletiva e políticas públicas, com ênfase nas temáticas da infância, adolescência, vulnerabilidade social e drogas, falou sobre direitos humanos na perspectiva da psicanálise e da clínica. Para ela, é preciso esclarecer o conceito de individualidade que, muitas vezes, é motivo de crítica ao trabalho da clínica. “Quando falamos em direitos humanos não podemos falar de individualidades. Isso não quer dizer que não seja possível uma atendimento individualizado. A psicanálise entende que o sujeito é produzido socialmente, no coletivo, nas relações sociais. Então, o que precisamos é aprender a respeitar as diferenças do tempo singular, individual, para o tempo das políticas. Muitas vezes as demandas de um campo e de outro se produzem em tempos diferentes e esse é o grande desafio”. Segundo Sandra, em alguns casos de violações de direitos, há uma desapropriação de direitos, de história e de possibilidade de fala. Ao trabalhar com famílias que enfrentam isso, por exemplo, é necessário dar o suporte para que elas mesmas denunciem essa situação. “Para isso, tem todo um tempo de apropriação e de reapropriação de direitos que nem sempre coincide com a pressa que a gente tem para que isso aconteça”. Essa necessidade também existe em casos de violências de estado. “São situações que vivíamos na ditadura e que permanecem acontecendo nos dias de hoje, não mais contra os comunistas, mas, agora, contra os traficantes, se justificando qualquer coisa contra o bandido traficante, mesmo que as vezes ele tenha 15, dez ou nove anos! E como denunciar um caso de violência de estado contra uma comunidade quando sabemos que essa denúncia irá provocar ainda mais violência? Quem fará essa denúncia? Precisamos trabalhar com a comunidade para definir isso”, falou Sandra.
Para a psicóloga Aline Piason sua prática humanista, focada na Psicoterapia Centrada na Pessoa, é importante para entender os grupos que têm seus direitos violados, por permitir uma escuta empática, se colocando no lugar do outro. Militante LGBT, Aline acredita que é dessa forma que a Psicologia pode contribuir para a desconstrução de paradigmas e modelos sociais heteronormativos. “A importância de nossa profissão, de nosso compromisso social, está no processo de empoderamento, de autoestima para assumir as escolhas. O sofrimento maior é o de não aceitação”, explicou. Na prática clínica, é importante uma congruência e a autenticidade dessa relação. Como estou fazendo a escuta? O que passo dos meus valores, da minha vida? Que discursos eu trago no consultório, na clínica? São algumas questões que devem ser observadas pelos psicólogos/as.
A mesa “Relações Raciais: Violências e Sofrimento Psíquico” contou com a participação da psicóloga Raquel da Silva Silveira, que integra o Núcleo de Pesquisa em Sexualidade e Relações de Gênero e o Centro de Referência em Direitos Humanos da UFRGS, e do psicólogo Valter da Mata, estudioso de Psicologia e Relações Raciais, integrante da Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia.
Raquel Silveira falou sobre produção de subjetividade e marcadores sociais da diferença, apresentando perspectivas teóricas e depoimentos que mostram os efeitos dessa discussão na prática. Segundo Raquel, os três principais eixos de produção de subjetividade na modernidade são: sexo/gênero/sexualidade, raça/etnia e classe social. “Somos produzidos e educados para o racismo. Em nossa formação não estudamos as questões raciais e só podemos entender o racismo se estudarmos ou vivenciarmos isso. Podemos até tentar nos colocar no lugar do outro, mas nunca vamos saber o que é o racismo de verdade. Só quem sofre racismo é quem sabe o que de fato é isso”, afirmou Raquel.
Valter da Mata destacou que o racismo é um problema histórico o que legitima o sofrimento vivenciado pelos negros. “O negro não se gosta e não tem como se gostar, pois não há referenciais positivos. E, mesmo assim, muitos psicólogos não enxergam no racismo uma possibilidade de sofrimento psíquico. Os psicólogos precisam reconhecer a existência do racismo e que, em maior ou menor grau, as práticas racistas fazem parte do repertório comportamental desses profissionais. Temos, no fundo, uma vergonha por sermos preconceituosos, mas somos atravessados em nossas práticas pelo racismo”. Para o psicólogo, a Psicologia vem crescendo e ganhando novas áreas, exigindo a atuação em novos espaços. “Estamos saindo da zona de conforto que era a clínica. Não cabe mais estarmos nos mesmos lugares, estamos abrindo outros espaços. Vamos nos relacionar com outras pessoas, com outras demandas. Se continuarmos com as mesmas práticas, estaremos fazendo estelionato profissional”.
A mesa de encerramento do evento teve como tema “Pluralismo religioso e estado laico: implicações para as práticas Clínicas”.
O juiz federal Roger Raupp Rios, conselheiro da International Council of Human Rights Policy falou sobre a complexidade da relação entre direitos humanos e religião. “Muitas pessoas acreditam que a religião ajudou a trazer à tona a ideia de direitos humanos. Muito pelo contrário, a religião é historicamente um lugar de intolerância e de exclusão. Os direitos humanos surgem como contraposição dos discursos e pretensões religiosas da Igreja”. O juiz apresentou duas grandes concepções de laicidade: a que adota uma postura de neutralidade em relação à religião e a de pluriconfessionalidade. “A neutralidade distancia a religião de interferir em qualquer organização pública, até mesmo no âmbito da saúde e da educação”, explicou. Segundo Roger, o risco dessa postura é acabar oprimindo a diversidade religiosidade. Já na postura de pluriconfessionalidade – adotada no Brasil – é permitida a contribuição da religião em casos de interesse público. “Isso acontece principalmente na saúde, na educação e na assistência social. É preciso cuidado para não confundir, pois o Estado continua sendo laico e é proibida a utilização de argumentos religiosos na esfera pública”, alerta Roger.
A psicóloga Liane Pessin, que tem experiência na prática psicanalítica em consultório e intervenções em saúde pública, também participou da mesa que debateu laicidade. Liane iniciou sua fala apresentando o conceito de que toda Psicologia é social e que, portanto, não poderia trabalhar com o indivíduo, aquele que está separado da sociedade, mas, sim, com o sujeito que se constrói como possibilidade de expressão do outro que tem dentro dele. Para ela, o tratamento psicológico é uma transformação e não pode se caracterizar como um aprendizado em que o clínico, intencionalmente, diz para a pessoa como ela deve ser. “Pensar a Clínica como do sujeito é muito diferente da clínica do indivíduo, pressupõe uma ignorância primordial. O pressuposto da clínica é o não saber, a ignorância e a laicidade é, nesse caso, uma das estratégias para sustentar essa ignorância. Não tenho como produzir a clínica se eu acho que eu sei e vou ensinar o que sei”, explicou. Assim, o grande desafio é escutar de forma mais ampla o sujeito. “A escuta é feita a partir de nossa identidade, de nossos valores religiosos e morais, que podem se caracterizar como um impedimento, uma barreira. Não existe neutralidade nesse processo, estamos sempre implicados na escuta. Por isso, precisamos de estratégias para minimizar aquilo que se produz e a laicidade é uma dessas estratégias”, afirmou.
O evento contou com performance do Grupo de Pesquisa e Experimentação Teatral "Arte e Pensamento", coordenado pela psicóloga, doutora em Filosofia, Ana Helena Pinto do Amarante. O grupo apresentou a esquete teatral “Identificação”.