A grave crise humanitária que atinge o povo Yanomami leva o Conselho Federal de Psicologia (CFP) a somar-se aos manifestos de solidariedade a essa comunidade e repúdio à sistemática violência a qual têm sido submetidas populações indígenas no país, em um quadro que se caracteriza como genocídio.
Entre 2019 a 2022, um total de 570 crianças Yanomami morreram de causas evitáveis, um aumento de quase 30% em relação aos quatro anos anteriores. Desnutrição severa, exposição ao mercúrio, malária e outras doenças têm também atingido anciãs e anciãos – grupo que têm papel fundamental na memória e transmissão da cultura indígena.
“O fato das maiores vítimas desta situação serem crianças e idosos, integrantes valiosos para que um grupo se constitua e perpetue, reforça a tese do genocídio. Acrescente-se a constante violência sexual perpetrada contra mulheres e meninas Yanomami e tem-se um gravíssimo problema de Justiça e direitos humanos”, destaca o CFP em seu posicionamento.
O Conselho Federal de Psicologia pontua que a atual crise humanitária é fruto de uma política deliberadamente anti-indígena e necroliberal do último governo federal, que se caracterizou pela negligência nas ações de saúde e proteção dos direitos a essa população, inclusive com avanço de garimpo ilegal em terras Yanomani. Nesse sentido, reforça que é preciso não apenas responsabilizar devidamente os envolvidos, mas restabelecer a função constitucional do Estado brasileiro na efetivação dos direitos e da assistência adequada a essa população.
O documento ressalta o papel da Psicologia brasileira em relação aos povos indígenas, especialmente a partir de uma prática emancipatória e crítica, que considere as particularidades de cada comunidade.
“A Psicologia brasileira é convocada a assumir seu compromisso social em relação aos povos indígenas. Para além de ecoar as vozes das lideranças e engrossar as fileiras que denunciam tais violências, é necessário que o campo científico repense novas bases epistemológicas e práticas profissionais que contemplem as especificidades dos povos indígenas”, conclama o posicionamento assinado pelo presidente do CFP, Pedro Paulo Bicalho.
Confira abaixo a íntegra da nota:
Nota de posicionamento sobre a crise humanitária Yanomami
Vocês estão realmente escutando nossas palavras? Vocês, brancos, realmente escutaram nossas palavras, as palavras do povo da floresta?
Davi Kopenawa Yanomami
O Conselho Federal de Psicologia vem se unir ao #SOSYANOMAMI, posicionando-se solidariamente acerca da crise humanitária e sanitarista que o povo Yanomami enfrenta em seus territórios, resultado do avanço do garimpo ilegal e do desmonte na atenção à saúde dos povos indígenas. Compreendemos que tal situação viola a dignidade da Pessoa Indígena Yanomami, demandando estratégias que perpassem pela garantia de políticas públicas pautadas pelos Direitos Humanos e possibilitem a remição da dívida histórica do Estado brasileiro para com a população indígena.
A tragédia humanitária deflagrada na Terra Indígena Yanomami (TIY) é fruto da política deliberadamente anti-indígena e necroliberal do último governo federal, que teve seu ápice após a pandemia da Covid-19, marcada pela omissão na assistência básica a esse povo. A negligência na condução do combate à pandemia nas Terras Indígenas, somada ao avanço do garimpo ilegal, resultaram em um cenário que caracteriza um genocídio em curso dos Yanomami. Nesse sentido, é importante dizer que a ideologia por trás dos fatos remonta inegavelmente à presença militar desde a época da ditadura, cujo projeto desenvolvimentista na região levou à exploração indiscriminada do garimpo, afetando de forma irreversível a vida daquelas comunidades (Soares, L. B., & Borges, G. A., 2023). A invasão sistemática da TIY, situada na região de fronteira entre Brasil e Venezuela, têm provocado conflitos e infligido aos seus habitantes desnutrição severa, exposição ao mercúrio, malária e outras doenças, como o caso mais recente da Covid-19. Além da falta de assistência, a presença nociva do garimpo não apenas leva a ‘doença do branco’ às comunidades, mas ao aumento da violência armada, com corriqueiros ataques diretos, como o que provocou o massacre de Haximu em 1993, conhecido como o primeiro massacre julgado como genocídio no Brasil. Como alerta Davi Kopenawa Yanomami, seu povo está morrendo de doença de garimpo, e o incentivo ou combate ao garimpo ilegal é uma decisão política.
Entre 2016 e 2020, a curva de destruição do garimpo passou a ter uma trajetória ascendente. Especificamente na TIY, esse indicador cresceu 3350% no período. Em 2019, aproximadamente sete mil garimpeiros retiraram ouro ilegalmente da região, o que corresponde ao maior número registrado. Não por coincidência, esse acréscimo ocorre após a desativação, pelo exército, das bases de proteção nos Rios Uraricoera e Mucajaí, as principais entradas para a TIY. Tal fato revela o desejo manifesto do então presidente Jair Bolsonaro, de franquear a mineração e a monocultura extensiva em Terras Indígenas, convicto de que os índios “são pobres em territórios ricos” (Fundação Oswaldo Cruz, 2020). Demonstra, ainda, que o cenário atual é resultado de um acúmulo de anos de violação aos direitos do povo Yanomami.
Resta nítido, portanto, a evidente responsabilização dos órgãos de governo que promoveram esta política anti-indígena. O Ministério da Justiça, a FUNAI, o Ministério do Meio Ambiente, o Ibama, a Polícia Federal e o Exército, em algum grau e a despeito dos servidores coerentes com seus deveres, foram transformados em instrumentos de perseguição aos povos indígenas, submetendo-os a condições de grande vulnerabilidade, à medida que, institucionalmente, facilitaram invasões, inviabilizaram demarcações e omitiram-se frente às flagrantes violações de direitos.
Assim, a despeito das recorrentes denúncias feitas pela sociedade civil organizada, órgãos públicos e mesmo organismos internacionais, como a Corte Interamericana dos Direitos Humanos, o cenário que se descreve é de terra arrasada, com agravos à saúde nas dimensões biológicas, sociais, psicológicas e espirituais.
As imagens divulgadas nos meios de comunicação chocam pelo grau de desnutrição visto em adultos e crianças esquálidas. Em números oficiais, tem-se que, de 2019 a 2022, 570 crianças yanomami morreram de causas evitáveis, significando um aumento de quase 30% em relação aos quatro anos anteriores (Yanomami, H. A., & Ye’kwana, A. W. 2022). Esse ambiente desolador revela violação não só do direito à saúde, mas também do direito à infância, sob a égide do Princípio da Proteção Integral, e da pessoa idosa, populações mais vulneráveis e suscetíveis à mortandade. É imperioso destacar que as anciãs e anciãos têm papel fundamental na memória e transmissão da cultura indígena, que deve ser protegida e preservada, enquanto formadora deste país. O fato das maiores vítimas desta situação serem crianças e idosos, integrantes valiosos para que um grupo se constitua e perpetue, reforça a tese do genocídio. Acrescente-se a constante violência sexual perpetrada contra mulheres e meninas Yanomami e tem-se um gravíssimo problema de Justiça e Direitos Humanos.
A situação, que em janeiro de 2023 foi declarada como Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN) pela Portaria GM/MS n.° 28, de 20 de janeiro de 2023 (Ministério da Saúde, 2023), expõe as consequências do processo sistemático de exploração ilegal do território e de violência contra os Yanomami, agora submetidos a um quadro deplorável de insegurança alimentar e crise sanitária.
A partir da nova conjuntura, que pôde se estabelecer com a mudança no governo federal, será preciso não apenas responsabilizar devidamente os envolvidos e restabelecer o papel constitucional do Estado brasileiro na efetivação dos direitos e da assistência adequada a essa população, mas também reconhecer e combater a fragilidade do nosso país na condução de políticas públicas diferenciadas que visem a garantia do bem viver das populações indígenas. Tratar da garantia de seus direitos implica, dessa forma, em um combate diuturno ao racismo estrutural, ambiental e institucional, que nega o ‘valor’ da vida da Pessoa Indígena e avilta sua organização social, cultural e a sua própria existência. É dever do Estado coibir a exploração violenta ao território e aos corpos Yanomami, pautada na justificativa de práticas exploratórias para o desenvolvimento econômico.
Quanto à Psicologia, busca-se contribuir a partir de uma práxis emancipatória e crítica, que considere as particularidades de cada comunidade e assegure o respeito a seus hábitos e contexto histórico-cultural, em oposição a políticas de cuidado historicamente assimilacionistas, que tendem a integrar os povos originários a seu próprio viés civilizatório. Entendemos que a maior presença da Psicologia no campo da saúde indígena, principalmente na saúde mental, álcool e outras drogas, é de grande relevância para que se reverta esse quadro histórico. Para isso, é vital fortalecer a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (Ministério da Saúde, 2002), cujo desmonte e subfinanciamento prejudicou profundamente a já precária atenção básica à saúde, que sequer conta, inclusive, com quadro próprio de profissionais da Psicologia.
Frente ao exposto, a Psicologia brasileira é convocada a assumir seu compromisso social em relação aos povos indígenas. Para além de ecoar as vozes das lideranças e engrossar as fileiras que denunciam tais violências, é necessário que o campo científico repense novas bases epistemológicas e práticas profissionais que contemplem as especificidades dos povos indígenas. Em relação ao território, é fundamental que as/os psicólogas/os compreendam o processo de genocídio, etnocídio e desterritorialização que os povos indígenas sofreram e sofrem desde o início da colonização do país até as formações sociais da região em que atua, a exemplo dos conflitos fundiários do local, criação das Reservas e Terras Indígenas (CREPOP, 2022).Cabe ressaltar que o CFP e o Sistema Conselhos de Psicologia desde sempre tem se pronunciado e colaborado para promover maior visibilidade às causas indígenas, bem como o aprimoramento do cuidado em saúde.
Referências:
Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas-Crepop. (2022). Referências técnicas para atuação de psicólogas/os junto aos povos indígenas. Disponível em https://site.cfp.org.br/publicacao/referencias-tecnicas-para-atuacao-de-psicologasos-junto-aos-povos-indigenas/
Fundação Oswaldo Cruz. (2020). RR – Invasão de posseiros e garimpeiros em Terra Yanomami. Mapa de conflitos: injustiça ambiental e saúde no Brasil. Disponível em https://mapadeconflitos.ensp.fiocruz.br/conflito/rr-invasao-de-posseiros-e-garimpeiros-em-terra-yanomami/
Ministério da Saúde, Fundação Nacional de Saúde. (2002). Portaria nº 254, de 31 de janeiro de 2002. Disponível em https://www.funasa.gov.br/site/wp-content/files_mf/Pm_254_2002.pdf
Ministério da Saúde. (2023). Portaria nº 28, de 20 de janeiro de 2023. Disponível em https://www.lex.com.br/portaria-ms-no-28-de-20-de-janeiro-de-2023/
Soares, L. B., & Borges, G. A. (2023, Janeiro 23). Para entender a tragédia dos Yanomamis, siga os coturnos. Estadão. Disponível em https://www.estadao.com.br/politica/gestao-politica-e-sociedade/para-entender-a-tragedia-dos-yanomamis-siga-os-coturnos/
Yanomami, H. A., & Ye’kwana, A. W. (2022). Yanomami sob ataque garimpo ilegal na terra indígena Yanomami e propostas para combatê-lo. Roraima: Autores.
Conheça as principais contribuições do CFP em relação ao tema
Referências Técnicas para Atuação de Psicólogas/os Junto aos Povos Indígenas
Relações raciais: referências técnicas para a prática da/o psicóloga/o
Referências Técnicas para Atuação das/os Psicólogas/os em Questões Relativas a Terra
Campanha Nacional de Direitos Humanos “Racismo é coisa da minha cabeça ou da sua?”
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*Foto do card: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Fonte: Conselho Federal de Psicologia.