Manifesto em Defesa da Política de Saúde Mental e do Processo de Reforma Psiquiátrica no Brasil
Nós, entidades, profissionais e associações de usuários e familiares do campo da saúde mental, bem como da saúde pública, assistência social, direitos humanos e outros ligados à luta pela conquista da plena cidadania no Brasil, manifestamos nossa preocupação e perplexidade frente à divulgação nos últimos dias, na grande imprensa, de matéria feita com base em dados parciais, extraindo de forma açodada conclusões equivocadas contra a atual política de saúde mental e o processo de Reforma Psiquiátrica Brasileira.
Os relatórios oficiais do Ministério da Saúde e de entidades profissionais dos quais foram extraídos tais dados não dão suporte às afirmações contidas na referida matéria. Consideramos de extrema gravidade a utilização de dados do sistema de mortalidade para inferir, sem fundamento epidemiológico, que a atual política brasileira de saúde mental vem contribuindo para o aumento da mortalidade de portadores de transtorno mental - o que foi inclusive enfatizado no subtítulo da matéria: "Sem hospícios, morrem mais pacientes". De forma similar, na referência à desativação de 12.551 leitos psiquiátricos e à implementação de 1.123 Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), a matéria omite que cada um destes Centros atende regularmente a mais de 300 pessoas, resultando portanto em um atendimento humanizado e aberto a mais de 300.000 usuários.
A reforma psiquiátrica vem convertendo serviços antes centrados exclusivamente no hospital psiquiátrico, para uma atenção em saúde mental com as seguintes características:
- serviços coerentes com os avanços internacionais prescritos na Organização Mundial da Saúde e na Carta da ONU de 1991 (Proteção das Pessoas Portadoras de Transtorno Mental e Desenvolvimento da Assistência à Saúde Mental);
- serviços coerentes com a legislação do SUS, de uma atenção integral à saúde, de acesso universal, de base territorial, com equidade, integralidade, participação e controle social, princípios cuja origem está na forte mobilização dos segmentos sociais ligados à saúde e que foram aprovados na Constituição Federal de 1988;
- serviços abertos na comunidade e integrados à atenção básica em saúde, que hoje atende cerca de 100 milhões de habitantes no país;
- novas modalidades de formação e exercício profissional em saúde mental abarcando as contribuições das diferentes disciplinas, com a democratização do trabalho nas equipes multiprofissionais, visando dar conta da complexidade e das várias dimensões do sofrimento psíquico, do desenvolvimento da subjetividade e da qualidade de vida, num movimento de autonomia e emancipação.
Assim, além dos Centros de Atenção Psicossocial – CAPS, foram também criados inúmeros Serviços Residenciais Terapêuticos, alas de atenção à crise em hospitais gerais, serviços para crianças e adolescentes e para usuários de álcool e outras drogas, projetos de trabalho/renda, cultura e atividades artísticas, possibilitando a conquista pelos usuários de uma vida ativa como cidadãos. Hoje, estes serviços representam mais de 50% dos recursos destinados à saúde mental, significando um real avanço em relação à década de 70, quando 97% dos recursos da área eram destinados exclusivamente a leitos psiquiátricos, provendo uma atenção marcada pela tutela, reclusão, isolamento da sociedade, cronificação, que não foi capaz de sequer garantir os direitos humanos fundamentais, como o direito à própria vida. Por todo esse trabalho de conversão do modelo de assistência, o nosso país vem ganhando reconhecimento crescente no plano internacional. E no Brasil, a reforma psiquiátrica constitui não apenas uma dimensão do SUS, mas sim uma de suas mais bem sucedidas expressões. Assim, suspeitamos que os ataques à reforma psiquiátrica podem estar mascarando uma tentativa de retrocesso no SUS.
É importante lembrar que os princípios que orientam a reforma psiquiátrica foram consensuados em três Conferências Nacionais de Saúde Mental (1987, 1992, 2001), com ampla participação em todo o território nacional; em duas conferências latino-americanas (Caracas, 1990 e Brasília, 2003); bem como na Lei Federal 10.216/2001. Ainda neste sentido, a XIII Conferência Nacional de Saúde, realizada neste ano de 2007, já aprovou a iniciativa da IV Conferência Nacional de Saúde Mental para o ano de 2009, o que representará, no decorrer de 2008, inúmeros eventos de participação coletiva e democrática de avaliação e discussão em todo o território nacional, da atual política de saúde mental.
Devemos admitir que ainda existem muitos desafios e impasses em seu processo de implementação, particularmente aqueles associados às constantes restrições orçamentárias, às dificuldades de implantação desta política em alguns municípios, além do legado mais geral de pobreza, exclusão social e violência, por um lado, e por outro, aos desafios específicos em ciência, tecnologia, pesquisas e formação profissional para esses novos tempos e novos dispositivos de cuidado.
Assim, nós, abaixo assinados, manifestamos nosso total apoio à atual política de saúde mental, entendendo-a como parte fundamental de uma agenda cidadã mais ampla para todos os brasileiros. E reafirmamos o papel fundamental da imprensa na sustentação política e ética da democracia, e por isso, consideramos de igual importância que a sociedade brasileira tenha acesso a informações fidedignas e consistentes sobre o processo de transformação da assistência em saúde mental em curso no Brasil.