Nos dias 08 e 09/09, o Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul e a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), por meio do Programa de Pós-graduação em Psicologia Social e Institucional do Instituto de Psicologia e do Núcleo E-politcs – Estudos em Políticas e Tecnologias Contemporâneas de Subjetivação, promoveram o seminário Laicidade e a Política Nacional de Assistência Social (PNAS).
O seminário discutiu sobre a produção de práticas de cuidado nas diferentes esferas de complexidade dos serviços da PNAS (Proteção Social Básica e Especial Média e Alta Complexidade) e de que forma as práticas religiosas têm se atravessado nesses contextos.
As políticas públicas de Assistência Social têm se configurado como um vasto campo de atuação profissional para a Psicologia. Para a conselheira do CRPRS Renata Kroeff, o tema vem sendo trabalhado de forma transversal pelo Sistema Conselhos de Psicologia em comissões, grupos de trabalho, publicações e eventos em âmbito regional e nacional. “Com um número cada vez maior de serviços públicos executados por instituições religiosas, os/as psicólogos/as devem refletir sobre seu trabalho nessas instituições”, afirmou.
A psicóloga Lilian Cruz, docente da UFRGS e membro do Núcleo E-politcs, destacou a importância de se discutir o tema considerando que a laicidade demarca a fronteira entre Estado e religiões e que um Estado laico não é um Estado ateu ou contra religiosidades.
As Políticas Públicas e a Laicidade
Na manhã do dia 08/09, foram debatidos aspectos conceituais sobre a laicidade e a relação do tema com as políticas públicas. A mesa “As Políticas Públicas e a Laicidade” foi coordenada por Rodrigo Kreher (UFRGS/E-politcs).
O juiz federal Roger Raupp Rios, professor do Centro Universitário Ritter dos Reis e conselheiro da International Council of Human Rights Policy, falou sobre a complexidade da relação entre direitos humanos, religião e Estado laico. Para ele, o Estado não pode interferir na religião e deve proteger para que nenhuma concepção religiosa se sobreponha às demais. “Nenhuma crença pode se sobrepor na esfera pública, ou seja, nenhuma crença pode exercer influência nas políticas públicas, no exercício profissional ou na aplicação da lei, por exemplo”. Desse modo, não é possível a fundamentação de atos do Estado em preceitos ou argumentos de fé, que são indiscutíveis.
Roger apresentou diferentes modelos de laicidade, explicando que o Brasil segue o modelo da laicidade pluriconfessional, aquele em que o Estado reconhece manifestações religiosas e pode trabalhar em parceria para a execução de políticas públicas, como a Educação, a Assistência Social e a Saúde. “É importante deixar claro que essa parceria é possível apenas para a execução e não para a concepção dessas políticas”, destacou.
Marco Antônio Torres, que é doutor em Psicologia pela UFMG e coordenador do Comitê Gestor Institucional de Formação Inicial e Continuada de Profissionais do Magistério da Educação Básica da UFOP na formação de professores/as da rede pública, abordou o contexto brasileiro com relação à laicidade, caracterizando-a como uma “laicidade precária”, ou seja, incapaz de conter as hierarquias, valores éticos e morais impostos pelos grupos religiosos à sociedade civil e de difícil efetivação. Essa "laicidade precária" é caracterizada por uma forte articulação no poder legislativo das bancadas religiosas. Na opinião de Marco Antônio, o debate sobre laicidade foi por muitos anos silenciado no Brasil, principalmente devido ao domínio católico. “Essa secularização faz parte de um processo social”, afirmou. Para ele, a laicidade pode ser compreendida como um processo de regulação da influência das religiões na esfera pública estatal que propicia a igualdade de organização de direitos entre sujeitos de diferentes religiões. “Temos uma grande dificuldade para operar com a laicidade nas dinâmicas entre os sujeitos e as políticas públicas brasileiras. Considero que vivemos uma laicidade precária que prejudica significativamente a produção de subjetividades”. Marco Antônio indicou como leitura, a publicação do Ministério Público “Em defesa do Estado laico”.
A conselheira do CRPRS Tatiane Baggio, integrante do GT Nacional de Psicologia e Laicidade do Sistema Conselhos de Psicologia, apresentou Nota Técnica produzida pelo Sistema Conselhos sobre laicidade. Para Tatiane, precisamos estar atentos/as a violações de direitos humanos com origem em argumentos religiosos. “A questão do aborto que é uma questão de saúde pública travada por discursos e argumentos religiosos relacionados à defesa da vida, o que é contraditório, pois a defesa da vida das mulheres não é respeitada”. A conselheira também destacou a difícil tarefa do/a psicólogo/a em separar o pessoal do profissional, não deixando que suas crenças pessoais interfiram em sua prática profissional.
Práticas na Assistência Social: entre a laicidade e os discursos religiosos
Na mesa “Práticas na Assistência Social: entre a laicidade e os discursos religiosos”, realizada na tarde de 08/09, os/as participantes mostraram que a laicidade ainda não está sempre presente nas práticas da Assistência Social. A mesa foi coordenada por Lilian Cruz (UFRGS/E-politcs).
A conselheira do CRPRS Cristiane Bens Pegoraro, trabalhadora do SUAS, apresentou proposta aprovada no 9º Congresso Nacional da Psicologia deliberando que o Sistema Conselhos de Psicologia reafirme a laicidade da Psicologia e se posicione em defesa do Estado laico, por meio da atuação efetiva das Comissões de Direitos Humanos. Em sua fala, Cristiane também resgatou o processo de constituição do Sistema Único de Assistência Social, a partir de 2005, com a consolidação da proteção social como um direito. “A partir disso, o Estado passou a entender que é responsável pela proteção social de seus cidadãos e que a Assistência Social não é caridade. E, diante disso, deve construir condições para que se aproprie disso, organizando e aprimorando as condições de trabalho, defedendo a profissionalização do SUAS”. Para Cristiane, o enfrentamento a práticas marcadas por aspectos não laicos deve ser feito a partir da micropolítica, ou seja, no dia a dia dos trabalhadores. “Precisamos ter cuidado para não reproduzir falas atravessadas por valores morais arraigados em nós, estamos permeados por esses valores. Cada um de nós tem que fazer em sua política, com a desvinculação de aspectos não laicos”, concluiu.
Representando o Conselho Estadual de Assistência Social, Simone Maria Pedott Romanenco e Anselmo Oliveira de Souza falaram sobre o trabalho que vem sendo realizado pelo Conselho na definição decritérios para a inscrição de instituições que tenham uma proposta de intervenção planejada, continuada e permanente, para padronização dos serviços oferecidos e respeito à pluralidade. Anselmo também trouxe exemplos de violências que muitas instituições impõem a seus trabalhadores, obrigando-os a rezar, participar de cultos ou atividades fora do horário de expediente.
Isadora Jung Bento, psicóloga militante do SUAS e que está na coordenação do Fórum Estadual de Trabalhadores do SUAS (FETSUAS), destacou que os/as profissionais da Psicologia têm tido poucos momentos para refletir sobre esse tema, que ainda não é abordado nem mesmo na formação do/a psicólogo/a. “No Fórum de Trabalhadores do SUAS se vê muitas práticas de viés religioso e os trabalhadores, muitas vezes, não se sentem fortalecidos para enfrentar isso”. Para Isadora os/as psicólogos/as devem ter bem claro os princípios éticos da profissão para defender suas propostas de trabalho.
Roda de conversa - Cenas do trabalho em Rede: relações de cuidado, laicidade e Assistência Social
Na sexta-feira, 09/09, pela manhã, foi promovida a roda de conversa “Cenas do trabalho em Rede: relações de cuidado, laicidade e Assistência Social”, coordenada por Bruna Battistelli (UFRGS), com relatos das psicólogas Anete Cunha, Mirela de Cintra e Sofia Safi e de Richard de Campos, representante do Movimento Nacional da População de Rua do Rio Grande do Sul.
Os/as presentes deram continuidade a alguns pontos debatidos no primeiro dia do encontro, como a importância da distinção entre trabalho e religião e trazendo experiências pessoais sobre a atuação de psicólogos/as e assistentes sociais em entidades religiosas.
Anete, que é mestranda em Psicologia Social e Institucional na UFRGS e coordenadora do CREAS/NH, defendeu que “se pense num enfrentamento ético e político da desigualdade social e que se supere a ideia da ajuda e do assistencialismo”. Durante sua fala, ela abordou, ainda, a necessidade de que se preste atenção também nas ações e atravessamentos da religião que já estão tão naturalizadas, que não são tão percebidas no dia-a-dia, como a ideia da culpabilização individual dos usuários. Nesse sentindo, Bruna atentou para o fato de que entidades religiosas, no geral, chegam a locais em que o Estado ainda não se faz presente, o que torna mais difícil o trabalho de desconstrução dessas perspectivas.
Ao falar de suas próprias experiências com essas organizações, Richard frisou que “a laicidade se acentua mais quando se trata de questões de gênero”, debatendo como esses espaços ainda são normativos e seguem enquadrando sujeitos em padrões culturalmente aceitos. No final das falas, os/as presentes seguiram trazendo situações vivenciadas em sua atuação profissional e debatendo estratégias de enfrentamento.
Direitos Humanos e Laicidade: enfrentamentos possíveis?
Encerrando o seminário, a mesa “Direitos Humanos e Laicidade: enfrentamentos possíveis?” foi coordenada por Neuza Guareschi (UFRGS/E-politcs). Luiz Eduardo Berni,psicólogo, mestre em Ciências da Religião pela PUCSP e Doutor em Psicologia pela USP, conselheiro do CRPSP e coordenador do Projeto DIVERPSI - Diversidade Epistemológica, Laicidade e Saberes Tradicionais do CRPSP, falou sobre a importância do posicionamento dos profissionais a favor dos direitos humanos. “Acima de qualquer dogma religioso é preciso estar atento aos direitos humanos”. Ele ressalta que novas dimensões conceituais relacionadas a definições de gênero e de família, por exemplo, geraram um conflito com as religiões e, consequentemente, paradoxos com relação ao tema da laicidade. Esse enfrentamento torna-se possível se considerarmos os direitos humanos. Luiz Eduardo defende uma laicidade abrangente, que possibilite diálogo com lado positivo da religião com maior autonomia do processo de subjetivação com alavanca para enfrentamento de questões da vida.
A psicóloga Carolina dos Reis, doutoranda em Psicologia Social e Institucional da UFRGS, integrante do Núcleo E-politcs e doutoranda em Ciências Políticas pelo Centre de Étude de la Vie Politique da Université Libre de Bruxelles, abordou os riscos de uma transcendalização dos discursos sobre direitos humanos, ponderando alguns conceitos presentes em declarações dos direitos humanos sustentados em argumentos sagrados e sobre a importância de não nos calar em nome dos direitos humanos. “Precisamos ser laicos também no uso da declaração de direitos humanos em nosso debate”, afirmou.
Para a bióloga Veridiana Machado, educadora social no Abrigo Municipal Bom Jesus da Fundação de Assistência Social e Cidadania, é preciso fomentar espaços de articulação nos serviços do SUAS. Ela relatou questões que surgem nos serviços de acolhimento baseadas em aspectos religiosos e que precisam ser contornadas, considerando o respeito às diversidades. “Símbolos religiosos devem ficar restritos a espaços individuais, respeitando as individualidades de cada pessoa”. Para ela, o respeito às diversidades deve pautar a prática dos profissionais na Assistência Social, sendo necessário “desconstruir lógicas e sabes para se chegar à população de rua, por exemplo”.
O vídeo com a íntegra do seminário será, em breve, disponibilizado no Canal do CRPRS no Youtube.