A classificação da homossexualidade como um desvio psíquico nunca foi unânime: no final do século XIX, Magnus Hirschfeld, médico pioneiro na defesa da diversidade sexual, Karl Heinrich Ulrichs e Karl Maria Kertbeny já haviam sido extremamente críticos da criminalização do que então era entendido como “sodomia”; este último foi quem cunhou o termo “homossexual”.
De outro lado, porém, havia as nascentes disciplinas da psicologia e da psiquiatria no esforço para taxar como desvios sexuais as expressões da sexualidade que não visavam a fins reprodutivos e que estavam, por isso, em desacordo com os padrões morais e religiosos da época. Esses desvios sexuais deveriam, portanto, ser sujeitos a terapias conversivas.
A 6ª edição da Classificação Internacional de Doenças (CID), de 1948, foi a primeira publicação da Organização Mundial de Saúde a incluir uma classificação de doenças mentais. Seguindo as tendências hegemônicas da época, as variações de gênero e de sexualidade apareciam tanto na CID-6 quanto na edição seguinte, a CID-7, de 1952, como termos de inclusão para o diagnóstico de desvios sexuais, os quais eram classificados como integrantes de uma personalidade patológica.
A Associação Norte-Americana de Psiquiatria (APA), seguindo as mesmas tendências, publicou em 1952 a primeira edição do seu manual DSM-I listando tudo o que a psiquiatria considerava como doença mental na época. Nesse manual, os desvios sexuais, entre eles a homossexualidade, também eram classificados como distúrbios de personalidade.
Influenciada principalmente pelo ativismo político em torno do orgulho LGBT, que inicia nos Estado Unidos em 1969, a APA removeu em 1974 a homossexualidade da condição de doença mental na reedição da segunda edição do seu Manual Diagnóstico de Doenças Mentais (DSM-II). Além disso, retomou os estudos que muitos anos antes já apontavam falta de bases empíricas que associassem a homossexualidade a indicadores de transtornos psicológicos.
A despatologização da homossexualidade, no entanto, foi gradual. O conceito de “homossexualidade ego-distônica” foi incorporado no DSM-II (de 1974) para ser utilizado nos casos em que indivíduos solicitassem tratamento para alteração da sua orientação sexual. Essa classificação só foi totalmente removida na versão revisada do DSM-III em 1987. Apesar dessa mudança, a OMS manteve a classificação de homossexualidade ego-distônica na publicação da CID-10, edição mais atual, em 1990.
Contudo, essas novas posições serviram de estopim para uma série de movimentos na sociedade civil e nas sociedades de psicologia e de psiquiatria, que se afastaram do modelo anterior, que buscava justificar diferenças a partir de um viés excludente, para outro que investiga, por exemplo, a gênese do preconceito e de seus efeitos na saúde.
Desde então, profissionais de saúde mental têm se dedicado a reverter os danos causados pelo estigma que até então tinham ajudado a construir através do aprofundamento em pesquisas na área da sexualidade, revisão de teorias e na construção de intervenções afirmativas e inclusivas voltadas para esses grupos.
É nesse sentido que um comitê constituído pela OMS para a revisão das classificações relativas à sexualidade, com vistas à publicação da CID-11 em 2018, recomendam a remoção de todas as categorias referentes à orientação sexual. Esse comitê reconhece que:
1) A homossexualidade e a bissexualidade não são expressões desviantes do funcionamento mental e sim expressões normais da diversidade humana.
2) A orientação sexual engloba desejo, comportamento e identidade sexual, que são atributos que não podem ser alterados clinicamente e que têm origem complexa em uma combinação de fatores inatos e contextuais.
3) O sofrimento psíquico que algumas pessoas homossexuais e bissexuais relatam é derivado do estigma aos quais estão sujeitos, devido à exposição, à discriminação e à violência.
4) As supostas terapias voltadas para a mudança da orientação sexual (especialmente do desejo sexual) não são efetivas e produzem sofrimento.
5) A classificação de homossexualidade ego-distônica tem sido utilizada para legitimar essas supostas terapias e se refere a um sofrimento psíquico que é socialmente motivado.
6) Na presença dessas evidências, é uma falta ética orientar profissionais de saúde a adotar práticas inócuas e que são aviltantes a uma população específica e manter um critério diagnóstico que serve de matriz para tais práticas. Esse é o objeto da Resolução do Conselho Federal de Psicologia nº 001/99, que veda a realização desse tipo de terapia por parte de psicólogas e psicólogos.
Tudo conduz, portanto, para que em 2018, com a publicação da CID-11, não haja mais o diagnóstico de homossexualidade ego-distônica que tem embasado alguns projetos de lei e decisões judiciais que visam a, quase 20 anos mais tarde, sustar a Resolução nº 001/99 e autorizar terapias conversivas no Brasil.
No atual contexto político do país, diversos grupos de interesse se organizam em torno dessa pauta para a promoção de políticas conservadoras que atentam contra as liberdades religiosas e de expressões de sexualidade e de gênero. No entanto, na ausência de qualquer evidência de que esse tipo de terapêutica produza qualquer resultado que não sofrimento psíquico, não é razoável que um Conselho profissional permita que profissionais ligados a ele se utilizem desses expedientes.
Como todo e qualquer direito, a liberdade no exercício profissional não é absoluta. Ou seja, não há nenhum salvo-conduto que garanta aos profissionais atuarem da forma como lhes convier, de acordo com suas convicções, sejam elas políticas, religiosas ou culturais. Pelo contrário: as profissões são regulamentadas por lei federal conforme a Constituição brasileira, que consagra a democracia laica.
O Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul, portanto, exorta os poderes legislativo e judiciário do país a que se esforcem para aprimorar os mecanismos institucionais de proteção e de promoção de saúde e cidadania das populações LGBT. Esses mecanismos já demonstraram ser efetivos instrumentos para uma vida mais saudável e, também, digna do ponto de vista da garantia dos direitos fundamentais da pessoa humana.
Assinam esta nota:
Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul
Conselho Regional de Enfermagem do Rio Grande do Sul
Conselho Regional de Serviço Social do Rio Grande do Sul
Conselho Regional de Biblioteconomia – 10ª Região
Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Rio Grande do Sul
Fórum dos Conselhos Regionais e Ordens das Profissões Regulamentadas do Rio Grande do Sul
Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul
Sigmund Freud Associação Psicanalítica
Conselho Estadual de Promoção de Direitos LGBT