O CRPRS lançou na noite dessa terça-feira (17) em Pelotas o Núcleo de Direitos Humanos da Subsede Sul, como espaço de debate sobre o tema na região. A presidente do CRPRS, Silvana de Oliveira, convocou profissionais e estudantes para fazer do espaço um “lugar bastante potente de construção e reflexão”. O Núcleo terá reuniões periódicas na sede de Pelotas. “Nosso objetivo com esse grupo é mudar o quadro de silenciamento e recusa que a Psicologia tem para muitos assuntos”, disse.
O lançamento do Núcleo de Direitos Humanos ocorreu na abertura da Jornada de Estudos e Pesquisas para o Enfrentamento à Violência Racial, de Gênero e de Sexualidade, promovida em conjunto plo CRPRS, Faculdade de Psicologia da Universidade Federal de Pelotas (Ufpel) e pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas E’LÉÉKO.
Participaram da abertura da jornada a professora Eliane Pardo, coordenadora do Núcleo de Gênero e Diversidade da Ufpel, o coordenador pró-tempore do NUAAD/Ufpel, Eraldo dos Santos Pinheiro, o coordenador em exercício do curso de Psicologia, Édio Ranieri da Silva, a presidente do CRPRS, Silvana de Oliveira, a conselheira do CRPRS Cristina Maranzana da Silva e a coordenadora da jornada, Miriam Cristiane Alves.
A presidente do CRPRS saudou a participação no encontro e salientou que a Jornada aprofunda o caráter inclusivo da educação. “Que a educação transforme, democratize, renove os espíritos e a cultura em favor do bem público”, exortou. Silvana de Oliveira também se disse emocionada com a participação dos estudantes, em trabalhos de qualidade “com crítica e com atenção aos movimentos locais”.
Além disso, reforçou o papel do Conselho na defesa “incondicional” dos direitos humanos. “Temos sido hostilizados, em muitas situações, devido a essa posição. Mas não vamos fraquejar nem desistir, pois é nossa missão e nossa obrigação manter a Psicologia viva e com essa potencia”, disse Silvana. “Neste momento, mais do que nunca é ocupar e resistir”.
A coordenadora da Jornada, professora Miriam Cristiane Alves, alertou, na abertura do evento, a situação de risco para o respeito aos direitos civis no país e disse esperar que o encontro tenha a capacidade de “potencializar mobilizações sociais e acadêmicas e propostas e ações coletivas de enfrentamento às violências sociais em prol de uma sociedade mais justa, equânime e mais justa, e sempre, sempre democrática”, disse. “Espero que todos possam sair daqui com várias pulguinhas atrás das orelhas”, concluiu.
A professora Eliane Pardo, que representou a Reitoria da Ufpel, salientou que Pelotas é a terceira maior cidade negra do país e “foi construída a partir do trabalho desses negros”. Ela defendeu a política de cotas praticada pela Universidade e disse que não tem violência maior que impedir uma população a ter acesso a seus direitos, como ocorre com as pessoas negras.
“Pelotas só mostrou, ao longo da sua história, a cultura branca, a cultura dos museus, num processo de negação do acesso daquilo que é nosso”, afirmou.
Trabalhos acadêmicos
A sessão de acolhimento reuniu os palestrantes dos dois dias de eventos e alunos da graduação do curso de Psicologia da Ufpel. A professora Miriam Cristiane Alves fez uma saudação aos presentes e disse que o seminário continha “muitos significados que precisam ser pensados durante este encontro”.
Antes da abertura oficial, os organizadores abriram espaço para a apresentação de dez trabalhos de pesquisa desenvolvidos pelos estudantes vinculados ao Núcleo de Estudos e Pesquisas E’LÉÉKO, divididos em espaços de quinze minutos e debatidos pela plenária. Os trabalhos foram selecionados previamente por uma banca.
Durante a roda de conversa que fechou o primeiro dia de debates, os participantes discutiram a questão do preconceito racial no país. O presidente do CRP da Bahia, professor Valter da Mata Filho, disse que a alta taxa de miscigenação no país e a quantidade de “traços fenotípicos” da população permite que o racismo aja de forma sutil, com enormes impactos mentais na população não-branca. “A Psicologia brasileira virou as costas para o racismo, nossa produção sobre o tema é escassa. É comum ouvir um profissional dizer que o racismo é coisa da nossa cabeça, que não passa de vitimismo”, criticou.
O professor Alcione Correa Alves, da Universidade Federal do Piauí, lembrou o caso da escritora mineira Conceição Evaristo, que pontua sua literatura em temas de discriminação racial, de gênero e econômica. Alves descreveu que em um dos seus contos mais conhecidos, chamado "Olhos d’Água", uma mãe cria os filhos sem apoio do pai e relata que as noites em que mais brinca com as crianças são aquelas em que falta comida em casa. “É a única forma de esquecer a fome, de blefar com a fome”, observou. “Necessitamos provar todo dia que somos gente e dispender uma enorme energia para mostrar que nosso estatuto de aluno, de pesquisador, vale tanto quanto de qualquer outra pessoa. Isso se chama violência epistêmica”, completou.
A professora de filosofia Flávia Chagas, da Ufpel, abordou o tema da discriminação feminina e lembrou das dificuldades enfrentadas pelos femininos contra-hegemônicos em oposição ao “feminismo, branco, burguês e capitalista do século 20”, ou seja, o feminismo de mulheres negras e pobres, de mulheres de esquerda, de mulheres ecologistas, de mulheres decoloniais, terceiro-mundista, e de mulheres de gêneto. “São os únicos capazes de garantir uma luz no fim do túnel pela manutenção dos direitos sociais básicos que estão sendo violentamente retirados pela opção política neoliberal”, criticou.
O teólogo e professor Jayro Pereira de Jesus, da Escola Livre Ubuntu, discorreu sobre colonialismo e racismo. Ele citou o sociólogo negro Muniz Sodré sobre o “semiocídio ontológico” praticado pelos evangelizadores, que segundo ele foi o pressuposto do genocídio físico da população negra. “Essa subjugação oficial e violenta dos negros persiste, não mudou nada em 500 anos de colonização”, advertiu.
Camila Peixoto Farias, professora da Ufpel, falou sobre a escritora Carolina Maria de Jesus – autora do clássico “Quarto de Despejo” (1960). A autora relatou a rotina miserável e invisível da favela do Canindé, em São Paulo, onde viveu. “Esse silenciamento tem tudo a ver com a clínica. A psicanálise nasce num berço patriarcal, homofóbico, misógino. Isso se reproduziu, ganhou caráter dogmático até em algumas escolas. A temática que nos une, portanto, é da violência. A psicanálise durante muito tempo violentou os negros, os homossexuais e as mulheres”, criticou.
A acadêmica Amanda Medeiros de Oliveira, do curso de Antropologia da Ufpel, também abordou a obra da escritora Carolina de Jesus – que chamou de “escrevivência”, citando a própria autora.
Airi Macias Sacco, também professora da Ufpel, falou sobre violência racial e psicologia. Ela apresentou dados que apontam um índice de apenas 0,5% de teses sobre raça ou racismo no Programa de Pós-Graduação da USP até maio de 2012: 15 de 2.912 trabalhos. “É um dado gritante, corroborado por outras estatísticas. Nós, psicólogos, falamos pouco e escondemos muito o tema do racismo”, disse.