A vice-presidenta do CRPRS, Cristina Schwarz, representou o CRPRS em audiência pública realizada nesta quarta-feira, 26/05, para discutir o Projeto de lei 277/2019, de autoria do deputado Dr. Thiago Duarte (DEM). A audiência foi proposta pela deputada Franciane Bayer (PSB) – relatora da proposta na Comissão de Saúde e Meio Ambiente da Assembleia Legislativa do Estado – com o objetivo de ouvir diferentes perspectivas relacionadas ao PL e, assim, subsidiar seu parecer do ponto de vista técnico para apresentar emendas ao texto. A audiência chegou a ter a participação de mais de 500 pessoas e durou mais de três horas, o que demonstra o quão importante e complexo é esse debate.
Um dos artigos do projeto determina que seja vedada a utilização da expressão “violência obstétrica”, o que, na avaliação da maioria das participantes, significaria um retrocesso, assim como outros dispositivos presentes no texto.
Já representantes de entidades médicas criticaram o que consideraram uma “politização do tema” e declararam que as organizações que estavam criticando o PL tinham interesse financeiro buscando uma reserva de mercado por meio dos partos domiciliares. Porém, o argumento foi rebatido pelas demais entidades, que expressaram seu compromisso com a saúde das mulheres e apontaram que o parto domiciliar representa apenas 1% dos partos, ou seja, não seria significativo nem estaria em disputa.
A Procuradora da República no Rio Grande do Sul, Suzete Bragagnolo, disse identificar retrocessos na matéria e propôs que se fizesse uma revisão do texto, artigo por artigo, a fim de compatibilizá-lo com normativas federais e internacionais. Citou como exemplo o artigo 8º, que veda o uso do termo “violência obstétrica”, um termo já consolidado, segundo ela. Sobre o artigo 4º, que apontaria condutas não condizentes com o parto seguro e as boas práticas médicas, disse que, embora não apontasse uma lista exaustiva de condutas, "até o via como positivo", de forma geral. Alguns itens, porém, como o inciso XIX, que autorizava o livre acesso “do outro genitor para acompanhar a puérpera e o recém-nascido”, estaria ultrapassado, segundo ela, uma vez que a parturiente tem direito a acompanhante de sua escolha e nem sempre essa escolha é o genitor, o qual, muitas vezes, sequer era conhecido. Ela também criticou o artigo 7º, parágrafo único, que permitiria o acesso ao hospital somente de equipes do quadro, o que, segundo ela, impediria a atuação das doulas, por exemplo.
Luciana Britto, pesquisadora e co-diretora do Instituto Anis, expôs algumas preocupações com relação ao PL, principalmente por focar na autonomia médica e desconsiderar a autonomia da mulher, usuária, paciente. “O PL ignora um ponto fundamental do cuidado à saúde que é a autonomia e a capacidade para a autodeterminação das mulheres gestantes e parturientes. A mulher não pode ser colocada como objeto de intervenções de qualquer tipo. Negar autonomia é perpetuar práticas de violência”, afirmou em sua fala. Além disso, para Luciana o PL traz uma simplificação da compreensão do que seria o Plano de Parto, que vai muito além de determinar o tipo de parto em si. “Sua construção tem o objetivo de atender necessidades da mulher antes e durante o parto e não as necessidades do médico. A previsão da modificação do plano de parto como regra, sob justificativa de preservar a saúde, pode ser perigosa e utilizada para justificar abusos e práticas violentas contra as mulheres, especialmente para as mais vulneráveis, mulheres negras, com deficiência e de baixa escolaridade”. Além disso, citou como outro ponto problemático o artigo 6º que elenca apenas os deveres da mulher, não citando os deveres dos demais profissionais envolvidos no parto.
Maria Helena Bastos, da Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras, considerou que abolir o termo "violência obstétrica" é uma forma de silenciar a vítima. Destacou também que o parto não é um evento médico e, sim, um evento social e que deve estar pautado na segurança do paciente e na qualidade da atenção. “Onde está a mulher neste PL? Meu sentimento é que sequestraram o ato dela de decisão, o que ela compreende como seguro para si e para seu bebê”.
Lara Werner, do Observatório da Violência Obstétrica no Brasil, apontou como o PL vai na contramão de recentes publicações da Organização Mundial da Saúde, colocando em risco a possibilidade de o estado ter acesso a fundos internacionais para financiar projetos na área de saúde pública. “Quando se tem violação de direitos humanos na atenção à saúde, se deixa de produzir saúde. Por isso, minha sugestão é que a proposta também seja apreciada pela Comissão de Direitos Humanos da AL”.
A representante do Coren/RS e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Virgínia Leismann Moretto, descreveu seu currículo profissional, incluindo convite das Nações Unidas para implementação de políticas públicas, para afirmar, em resposta às falas dos representantes da classe médica, que não havia interesse econômico da sua parte, mas compromisso com a ciência e com as mulheres. Ainda segundo ela, o PL prevê que o plano de parto deva respeitar a autonomia médica, no entanto o plano de parto era a primeira prática recomendada pela OMS já em 1996, e reforçada em 2018, quando se frisou que deveria ser concebido no pré-natal e que os desejos da mulher deveriam ser aceitos e discutidos com ela. “Aqui (no projeto), há uma inversão”, disse. Também com relação à autonomia dos profissionais, disse que isso deveria valer também para os enfermeiros obstétricos, que tinham o exercício garantido para o acompanhamento do parto.
Em 2018, segundo ela, o Rio Grande do Sul registrou 140.584 nascimentos, dos quais 62% foram por cesarianas. “Será que foram intervenções necessárias ou aí entra a autonomia médica?”, questionou. Segundo ela, embora se diga que são as mulheres que pedem pela intervenção cirúrgica, pesquisas científicas derrubavam essa tese.
Mariene Jaeger Riffel, da Associação Brasileira de Obstetrizes e Enfermeiros Obstetras/Seção RS, frisou que também não tinha interesse econômico, mas sim político, “porque a saúde das mulheres é um tema político". Disse que o plano de parto não era realizado para a mulher, mas com ela, a partir de escolhas informadas, e que a instituição e os profissionais precisavam prover as condições para que ele fosse operacionalizado.
Representando o Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul, Marcelo Rodrigo da Luz disse que o projeto tratava do direito à vida – não só da mãe, mas também do nascituro – e que, muitas vezes, devido a “militâncias e outros interesses”, isso era deixado de lado. Esse direito à vida, afirmou, antes de mesmo de constar na lei, já vinha “do livro mais antigo que conhecia, a Bíblia Sagrada”, segundo a qual “a vida é uma dádiva de Deus e um bem muito precioso e cabe apenas ao homem honrá-la e cuidá-la". Pediu a valorização do ato médico justificando que é o médico o profissional “mais habilitado para tentar, com a ajuda de Deus, tentar salvar duas vidas” em sala de parto.
Para o presidente do Sindicato Médico do Rio Grande do Sul, Marcelo Matias, o uso do termo “violência obstétrica” era inadequado, preconceituoso e violento, além de levar o “tumulto ao ambiente hospitalar”. Ele disse que as críticas eram fruto de uma politização com interesses múltiplos, parte deles econômicos, por grupos que desejavam se integrar ao “mercado do nascimento” e que, para isso, utilizavam técnicas agressivas de coerção. “O que essas pessoas querem é trabalhar dentro de um hospital público e cobrar por seus serviços”, considerou.
Logo após a fala das/os convidadas/os, o debate seguiu entre as/os participantes da audiência pública.
Cristina Machado, presidente da Associação Gaúcha de Consultoras em Aleitamento Materno e doutora em Ciências, disse que o projeto não defendia nem as mulheres, nem os bebês e que o estado emocional das mães, assim como as condições do parto, tinham impacto direto no sucesso da amamentação.
A médica obstétrica Paula de Freitas emocionou-se ao relatar seu primeiro contato com a prática obstétrica, quando a equipe que realizada um parto que ela acompanhava tecia comentários sobre o fato de a mulher não “estar colaborando no período expulsivo”. Posteriormente, na hora de realizar a sutura, o médico não aplicou anestésico e, diante da reação da paciente, teria dito “não colaborou, agora aguenta”. Referiu que o tom de julgamento e ameaça lhe remeteu à expressão “violência” naquele momento, ainda que não conhecesse o termo técnico “violência obstétrica”. Afirmou entender que o podia ser considerado por profissionais da saúde como uma premissa de má índole e que por isso os ofendesse, mas afirmou que não se tratava disso, e sim de comportamentos institucionalizados e naturalizados. Por isso, entendia o termo como um convite ao diálogo, à reflexão e à revisão de procedimentos.
Também Bruna Rocha deu um depoimento pessoal sobre o tema. Contou ter sofrido violência obstétrica e ter perdido um filho por causa dela. Na ocasião, ela relatou seu caso nas redes sociais e recebeu centenas de relatos semelhantes que a levaram a atuar na causa.
Com mais de três horas de duração, a audiência pública ouviu mais uma série de ativistas e especialistas na área que se opuseram a dispositivos contidos no projeto. Também participaram da audiência Natália Wulff Fetter, coordenadora-geral da Associação de Doulas do RS, que afirmou que a categoria profissional não concorria com outras, apenas complementava o trabalho, oferecendo apoio físico e emocional e ressaltou a importância do trabalho em equipe na cena do parto; Gisleine Lima da Silva, coordenadora da Divisão dos Ciclos de Vida/ Política de Saúde da Mulher da SES/RS, que lembrou que a autonomia do paciente era um dos pilares da ética médica; Fábia Richter, representando a Famurs e o movimento "He4She" da Assembleia Legislativa, que considerou que muitos ainda não compreendiam a grandiosidade dos novos conceitos na prática medica e colocou-se à disposição para auxiliar na construção de uma legislação mais moderna e mais abrangente, que enxergasse a mulher como centro; Ruth Rodrigues, do coletivo Nascer Direito, que criticou a remoção do termo "violência obstétrica".
Informações: Agência de Notícias ALRS