De que maneira você avalia o modo binário que a sociedade ainda trata a questão de gênero? Como podemos mudar isso?
Existem muitos binários que compõem a dinâmica do cotidiano. Apesar de estar em jogo um gênero que é visto supostamente como opositivo, masculino e feminino ou marte e vênus - que precisam ser até de planetas diferentes -, acredito que a grande questão a ser rompida dentro da psicologia está na forma com que ensinamos que gênero está na mente e que a sexualidade está no genital, pois esse é um dos binários que mantêm a transexualidade ligada a uma leitura de doença mental. Por ser uma questão mental, aparentemente, pelo menos, a transexualidade precisaria ser avaliada pelos profissionais psi (psicólogas/os, psiquiatras, psicanalistas), fazendo com que não seja necessário romper apenas as diferenças entre homens e mulheres, que produzem desigualdades, mas como separamos corpo de gênero, corpo de sexualidade. Uma vez que o gênero deixasse de ser uma questão do "mundo interno do sujeito", ele passaria, por exemplo, a caminhar paralelo a uma compreensão de corpo que é político. Em outras palavras, poderíamos mudar isso, o modo binário com que as sociedades ocidentais interpelam travestis e pessoas trans, a partir do momento em que lidamos com a produção social da vulnerabilidade, retirando dos sujeitos uma culpabilização "subjetiva" que nos impede de formular um projeto de psicologia ligado a mudanças estruturais.
Qual sua avaliação sobre o acesso à Saúde e às Políticas Públicas pela população trans? O que precisa ser melhorado?
A saúde trans, digamos assim, tem caminhado por um percurso bastante interessante com a chegada dos ambulatórios destinados a propor uma concepção de assistência integral, desligando as identidades trans e travestis de uma tradição médica que as relacionava a alguma cirurgia. Agora, é possível pensar um tipo de demanda ou tratamento que não está centralizado em intervenções cirúrgicas, mas que também busca estabelecer alguma distância em relação aos diagnósticos, tendo em vista que a transexualidade não é diagnosticável. Algo que digo pensando que os diagnósticos que pretendem avaliar o gênero na verdade estão avaliando paradigmas culturais relacionados tanto à feminilidade quanto à masculinidade. Dessa forma, o acesso à saúde não deve ser perpassado por uma avaliação pautada nos níveis de mulheridade, por exemplo, que uma paciente é capaz de apresentar, uma vez que tais níveis são há muito criticados por diversos setores feministas, interessados em empreender questões a um tipo de ciência que "biologiza" a diferença social entre os sexos. Dito de outro modo, as pessoas trans e travestis enfrentam (quando enfrentam) outras questões mais urgentes, como abandono familiar, evasão escolar, transfobia, violência, desassistência, etc. Algo que precisa nos levar a reflexões sobre saúde que não digam respeito somente a um "fazer" hospitalar, pois isso significa entender a transexualidade como uma questão médica, não como uma questão de direitos humanos.
Como a Psicologia pode contribuir no enfrentamento do preconceito à população trans?
Penso que a psicologia, para além de contribuir, tem muito a se beneficiar com o enfrentamento da transfobia. A intensa entrada de pessoas trans e travestis no quadro de psicólogas/os tem sido útil para que a profissão considere outros horizontes éticos, talvez mais próximos de um mundo possível para quem está inconformado com destinos rígidos que são dados logo no nascimento. A transexualidade é, desde sempre, um questionamento aos roteiros sociais. Por esse ângulo, acredito que a psicologia tem sido deslocada, a partir das psicólogas travestis, por exemplo, a pensar um corpo que não precisa cumprir com determinadas expectativas hegemônicas. Assim, os modos de contribuição dessa ciência psicóloga perpassam uma maior escuta acerca do que as pessoas trans e travestis têm produzido, pois não basta perguntar "o que a psicologia acha disso?" sem considerar o que nós, de fato, temos a dizer, também, acerca da saúde mental.